domingo, 5 de maio de 2019

A Tempestade


Santuário de Fátima Masuma



Em redor do fogo há uma voz que leva a morugem a perder-se na pastagem da Primavera. Sobre as camélias, sob o capuz alto e por cima de cascos vermelhos o homem com metade do rosto mordido por estrelas montava brando. Um rio a rasgar-lhe o peito com os pensamentos incessantes dos povos, no lugar do coração a pedra verde de todas as pedras palpitava, e o sangue regava a vegetação e as papoilas e os lírios e os cravos erguiam-se do topo das suas pequenas torres e minaretes para gritar ao vento: «nada acaba, para que tudo comece, e por isso os astros devoram e têm fome» Mas ao longe, sobre os ombros egípcios de uma menina despida, cai a Lua Nova e ele vê, ela ergue uma pequena pena ornada desse um só olho que a observa contra a luz das quedas-de-água e o homem sobe, galopando o céu nocturno para romper o azul, regar o inferno e levar a justiça à boca dos cães selvagens. E um dia, sem autor algum, arderá a esperança e a lembrança no pó das luas negras.

André Consciência


quarta-feira, 3 de abril de 2019

O Poeta

O Poeta, Javier Rodriguez





Montado num boi observo com a ave de gelo ao ombro. Três mulheres sentam-se à porta da fogueira e miram as estrelas de pedra. Inteligente e nas rachas da chama cresce uma trepadeira de forte perfume. 



André Consciência

quinta-feira, 7 de março de 2019

Luz Nas Pedras



Philip Glass - Violin Concert 2nd Movement



I

Eu tinha trazido dois cães lobo, a minha sombra cinzenta e as minhas pernas compridas, ela uma sugestão, violetas na mão disforme, cabelos de prata interminável. 

Acocorei-me e voltei a cobrir-me. O dia acabaria por nascer além da orla da floresta, mas as estradas já não me incomodavam. 

II

A chuva começou a cair em impiedosas bátegas de água. Havia um travo gélido no ar. Tu enegreceste ainda mais como se caísses com o crepúsculo a estender-me um manto de ouro. A minha cabeça baixa escorre como água mas tu uma fogueira em cima da égua contra o chicote do vento e da chuva.

André Consciência

quinta-feira, 24 de janeiro de 2019

O Operário


Sisyphys (1548–49) by Titian


Um homem caminha
A brilhar de si para si
E o mundo prostra-se
Em alívio.

Aos ombros o homem traz
As brasas, e a superfície pesada
Do Sol, as suas costas negras
Esclarecem a escuridão
E há fagulhas no céu
Que se levantam do chão. 

As pernas de ferro movem-se
Uma à frente da outra, 
E alguma coisa cai com estrondo
De um lugar longínquo
Mas o homem prossegue
Os olhos postos no Inferno
E em alguém que fraqueja. 

O chumbo do seu peito
É uma clareira estranha
E quando chove o homem, pulsante 
Escreve, mas a chuva não lhe toca
E a solidão boquiaberta
Foge à sua toca.

André Consciência