sexta-feira, 8 de junho de 2018

Aztlan


fotografia de Eunice Correia



I

Primeiro atravessava o céu no fogo líquido da faísca da vida e da morte, depois massas de pedra surgiram, uma deslumbrante queda de areia, a abóbada negra e depois da cor do fogo. Enquanto isso, alguém escrevia, à proa dos raios vermelhos no mar e nas nuvens, pousou numa ilhota do mar Cáspio e encontrou vestígios de conchas e duas cabanas cobertas em vidro, depois, as casas com pedras brancas, negras e vermelhas, nos pátios das quais escravos e senhores bebiam e dançavam juntos. Mais além, uma muralha de ouro, templos ornamentados de jóias e paredes de prata, e o Sol sentado. Nas proximidades, um crânio de rena, e na costa, o fogo e a água continuavam a travar combate, e os homens eram enterrados com as faces voltadas para Oeste, a contemplar completamente surpreendidos as florestas, as casas e as cidades. A fome não existe aqui, mas existem os dilúvios, nas alturas celestes o barulho das chamas.



II

Quando os homens se multiplicaram, construíram um altíssimo zigurate, fundindo as suas pedras com um relâmpago monstruoso, para que aí pudessem encontrar refúgio no caso de o segundo mundo vir a ser destruído. Ali, ensinava astronomia, com vista para as pirâmides meio-cobertas pela lava sólida. Os monarcas e os guerreiros passeavam-se nos largos ostentando cruzes ao pescoço. Todo em redor, vagas altas como montanhas, furacões, explosões vulcânicas e barbárie. Um peixe e um pai caminham-se pela costa. Uma ave metálica pia. E voam os homens-pássaro sobre os braços do mar e em redor da Lua. As luzes das estrelas apagam-se e elas sobem o céu. O meu rosto ilumina-se. Preparei-me, levantei-me e atravessei a vasta terra em que os impuros dormem sob uma massa de meteoritos. Os meus membros movidos à força celeste, o meu peito à potência do Universo, o meu semblante dez mil sóis, que só escondia para chorar a falta dos meninos do Zigurate, cujo tempo, naquele mesmo instante, desfigurava os corpos, lançando por terra as unhas e os cabelos e os vasos de barro e esbranquiçando as aves e morrendo nas regiões exteriores do espaço e por cima dos ventos.

Perdi-me em vales cheios de neve ou escondi-me nas catacumbas do fundo das montanhas. Acendi uma luz no abismo que assegurava o crescimento das plantas. Ás vezes disfarçava-me de mercador, pastor ou soldado, e surgia de súbito no deserto, montado a cavalo para dar presentes aos mongóis. Nas montanhas surgia a avançar na obscuridade de tocha na mão, e prestava socorro a viajantes. No rio Dichu, cultivava flores azuis no gelo que oferecia a alguma exploradora. Raramente, de noite, rodeava-me de massas fulgurantes que enchiam o céu de línguas de fogo e punha-me a pairar, o olhar voltado na direcção da Ilha Branca.



III

Ás vezes, quando acendo as pedras negras para aquecer a água dos banhos, o pensamento ainda foge para os dias primevos, e consigo ver a ave a arder, agigantando as árvores sob o seu calor e emprenhando os animais. Então, vinha o desejo de que a minha lâmpada eterna algum dia se apagasse também.

domingo, 29 de abril de 2018

Ao espírito dos pobres


fotografia de Soraya Moon



Ás vezes as paredes não estavam vazias
Escutava-se uma respiração familiar
Um perdão distante que alterava o rumo
Do vento, das pedras, das casas
Da vista que se escapa dos olhos
Para longe, e as paredes vazias
Surgiam no alto do campanário
Fechava os olhos com força
Á espera da ausência do tempo
O ar estarrecia, claro, altivo
Frio, e eu sozinho, inteiro
E na parede um riso de criança
Arrastava a mão para lado nenhum
E um dia cairá uma chama
Alta, do alto das campainhas,
Como um aviso, e a memória efervescente
Acenderá todos os lugares
Os campos a arder e as crianças a dançar
Sob o jugo do fogo e a habitar as paredes
Evocarão um nome que ninguém conheceu
E eu poderei rir, e a minha respiração
Há-de ser familiar, os cabelos o trigo
A palavra o ar.

André Consciência

quarta-feira, 21 de março de 2018

Ossadas

poema poeirento encontrado aquando de arrumações para sair de um campo que campo já não é


A caveira à ladeira da porta
Deixa entrar no bar
As mortes de Lisboa
E não posso deixar de pensar
Que as grandes cidades de fantasmas
São habitadas pelos vivos.

Nos campos, sopra o vento
No vento, o fôlego perdido da cidade
Até que a minha terra límpida
E brilhante
Seja o esqueleto de nunca ter sido
Cidade.

André Consciência