sexta-feira, 16 de dezembro de 2016

A Tríade






O palácio do Príncipe é uma mulher de paredes brancas e janelas voltadas ao crepúsculo. As janelas são muitas e para lá das gloriosas sacadas de ouro escuta-se o sussurrar das princesas ao longo dos beirais esculpidos. Ali, os poetas vestem-se de peles ou de seda e andorinhas migram em pequenos círculos sempre no mesmo céu. Os pomares decompõem-se com as flores que florescem, os lagartos brilham esticados e imóveis ao Sol de barbas congeladas, os homens adormecem ao meio-dia da neve que cobre as ameias, as borboletas flutuam sobre pingentes de gelo, e os pássaros de plumagem brilhante equilibram-se no vento selvagem dos locais abandonados, as mariposas maravilham-se pelos campos frios entre flocos, mais altas ainda que os contrafortes, e os gansos selvagens voam baixo, com os gloriosos insectos e as orquídeas iridescentes. As águas gorgolejam quentes sob as nuvens negras e tudo dança num círculo de luz.

André Consciência

sexta-feira, 11 de novembro de 2016

O Cancioneiro


Leonard Cohen


É simples o tilintar da folha, o canto alto do pássaro, é alto e é simples, e é fundo. 

Na distância vertical o vapor sobe e esfuma-se e o braseiro alumia-se e acentua-se, assim era o que fugia das mãos e o amor que teimava e vencia. 

Vê, se mesmo a treva, agora, não se tornou dócil, com o seu fruto incessante em correnteza, se a luz oriental não habitou o copo vazio, o cinzeiro apagado e a noite sem estrelas.

E sê baixo, para que tudo possas reconhecer recortado no mapa das estrelas. Deixa para a sabedoria o ser titã, alta e orgulhosa e na torre de silêncio és titã, alto e orgulhoso.

terça-feira, 8 de novembro de 2016

um poema para uma traça



A Fenda No Casulo 

És uma brecha no mundo, para onde as águas das esferas caiem esquecidas. Faço soar os sinos do nosso casamento. Tu és o pássaro imortal, aurora após aurora, sobre montanhas. Os leões sobem para te cortejar e amam-te, porque devem morrer. 

A Carbonização da Borboleta 

Dormimos na neve como podíamos, para evitar passar a noite no bosque da aranha, e sonhámos com versos brancos com mais de cem linhas. De manhã, trepavas horrendamente de abismo em abismo, sussurravas e a chama das velas cintilava.

segunda-feira, 3 de outubro de 2016

Exosfera





Como uma silenciosa estrela no espaço é toda a palavra. O processo que no iniciado desperta a natureza angélica é o poético. Primeiro ele é sensível à terra, ao mar, à carne, à sua habitação, à cidade, ao deserto e ao campo; às montanhas e aos vales, às ilhas, às praias e às florestas. Depois tacteia o que emana das pessoas, dos elementos, dos poderes, dos anfíbios e dos mamíferos. Medita na mente dos cientistas, dos filósofos, dos químicos, abre o crânio ao céu e ultrapassa os obstáculos. A seguir deixa-se ficar só com o que há de imediato. Dá aos outros o que ele não tem mas que é destes, e os astros descem à terra, ao mar, à carne, à cidade e às florestas. Sabe que o espelho das coisas o oculta, e que o fogo o revela. Por meio de incendiar o espelho pode depois olhar a natureza e observar a sua profundidade em extensão, as inteligências que a governam. Então, vestido das ideias afirma automaticamente o espírito, e ainda que as suas ideias não sejam universais, o seu espírito será. Caminha como uma imperatriz sobre o corredor vermelho do pecado, adquire a experiência de um tigre, cobre-se dos elementos da terra e desaparece nela. De si ficará só a força e estará vestido de fogo, as paixões, encurraladas, irromperão pela sua carne, o seu espírito como uma águia bicando o seu corpo e o seu corpo estrangulando-lhe o espírito como uma serpente. Mas direcciona todos esses elementos para o seguinte enigma: "No espaço vazio, o que significa a Ousadia?", os seus instintos fazendo-o silencioso como o caçador; e sem nunca descobrir a terra prometida, retorna um monumento da mesma, como um homem que, durante tempo suficiente, se fitou ao espelho, apercebendo-se que a maior porção da sua aparência jaz entre as sobrancelhas.

André Consciência, de um apotamento escrito aos dezoito anos.

quarta-feira, 21 de setembro de 2016

Cidade



modelo: André Consciência; fotografa: Eunice Correia



Não me viste, na casa do príncipe
Quando as paredes se pintaram com o verbo
E não sabias que um dia o meu corpo
Foi um cisne, compacto, invertebrado, e luminoso,
A arrumar os cantos da penumbra, da hera e de arruda,
As clareiras do vento, do coração e do poente
Junto aos lírios e aos precipícios, erguendo-me ao cair do mundo
Fendendo as árvores, baloiços por ancas.

André Consciência

quarta-feira, 17 de agosto de 2016

A Extrair O Símbolo


modelo: Eunice Correia
fotografia: André Consciência



A noite era quente, áspera com maresia, dela caia uma mão cheia de geada que ele via desaparecer no descampado. Segurava numa Lâmpada de cobre e pensava no amor, essa palavra a construir-se na abobada e a desconstruir as outras, as estrelas a escalar precipitadas sobre a cabeça das uvas dos dedos dela. A erva crescia-lhe nos pés e a aranha vermelha no peito cheio. Então, repetiam o mesmo nome, um nome que nunca se tinha escutado sobre o chão, a aranha subia a pétala de uma flor e todos os túneis seguiam para cima.

André Consciência

terça-feira, 14 de junho de 2016

MALAK

Malak XXI


I


A palidez do rio tremulava nas minhas faces. Abri uma clareira de ar com a mão a azular-se e colhi uma dúzia de búzios. Uma ave fitava-me na margem, chamuscada pelo Sol, e eu cantei um piar louco, desajustado com a voz dos anjos. Não te via, Deus, há tanto tempo. Procura-me. Dizia. Aqui, do outro lado do rio é sempre igual. Mas, pelo menos, depois deste rio não hei-de ver nenhum homem, fisicamente capaz e ausente, a querer ser uma rocha que nunca soube parar. Mesmo nas proximidades do lago e na região sulina do mar, os mestiços caminham de cabeça baixa, a cultura pesando-lhes sobre o pescoço. Uma vez, esperei durante oitenta e três anos num jardim do Golfo Pérsico, outra na costa oriental do Mediterrâneo, numa estreita península que se projectava para Oeste, quase uma ilha. A ave também lá estava, rubra, azul, a portar a glória da manhã mesmo na noite, mas só eu cantei. Raramente chovia, ainda que a precipitação não poupasse os planaltos circundantes e quedasse copiosamente. Havia uma árvore como as árvores em Casa, alimentada pelo rio que atravessa a Mesopotâmia, coberta de metais e pedras preciosas. Sentei-me e esperei por muito tempo, ganhei ramos, raízes, cascalho, e pus-me a brilhar, eu e a árvore, a ignorância, a selvajaria e a treva a rugir à nossa volta. Começou-se a levar ali pastoreio, aves e espécies domesticadas. E um casal, vindo de mundos distantes e centrais, alimentou-se dos meus cabelos, a sua existência animal não envelhecendo nem um dia. Quando acordei, a árvore ardia, o fundo do mar mediterrâneo a leste, que unia África a Sicília, afundava, e apenas as trevas exteriores haviam chegado. Aqui e agora, do outro lado deste rio, existe a voz seráfica de outro jardim. O concerto nunca acabou, e sinto que só eu canto...


II


Certa vez vi o Casal Celeste descer sobre um templo ao Pai Abandonado e dez dias depois, tornar-se homem e mulher. Recuperaram a consciência simultâneamente, de todos os tempos, de todos os lugares, mas vividos em par. Ergueram-se trôpegos, com três metros de altura, a pairar sobre Jerusalém, e os conflitos do mundo baixaram-se rasteiros, com um gemido longo, e calaram-se, perdendo a consciência, a personalidade, principiando a rir-se como crianças no convívio da família. O Casal também me viu, um peregrino ao meio-dia, e falando-me, a ave cantou na minha língua. Debaixo da Lua sentámo-nos, eu e a ave, a fazer planos para o dia seguinte. De manhã, erguemo-nos sobre os vastos jardins do mundo a beber o leite das nozes e o suco das frutas. Depois do meio-dia, punha-me a absorver a luz de certas regiões do universo. Então vimo-los subir os montes, prostrarem-se, a verter leite, um e o outro, dos seios. Sob o Sol, os seus corpos nus emitiam uma luz difusa, mas de noite a Lua vestiu-os e só as suas cabeças irradiavam, num uivo que alastrava a uma distância insondável.


Malak XXII

Tinha cruzado a fronteira que intersectava o meridiano e atravessado a estrada de quilómetro e meio para Sul e segui para Este, embrenhando-me nos vales, e transpus a garganta para Sul, embrenhando-me nas planícies, atravessei os montes e fui até às montanhas. Tinha no peito uma ferida já cintilante, no ponto em que Deus me mordera dois anos antes, algures nas montanhas sonoras. 

Deambulei depois disso pelo Oriente durante um ano, Comia camelos e cavalos selvagens e marcava as árvores com a minha mão. Depois de tanto tempo a ignorância dos homens ainda era para mim um enigma, com os pés em tumulto, a deambular, a urrar e a debaterem-se através da vida, arrastando tudo no seu caminho até morrerem. Os homens evocavam em mim uma qualquer raiva de fera, uma fome, como se violassem uma velha ordem. Imprimia estes princípios: nunca regressar para junto de um vivo uma segunda vez, nunca atravessar a mesma estrada nem a mesma linha férrea. Nunca louvar o Sol duas vezes no mesmo local da terra, embora ele sempre no meio-dia do céu. 

À noite, descia até às planícies e perseguia os macaco-leão, a vê-los rodopiar e fluir na sua própria massa, a poeira levantava-se como um fumo e eu recordava-me do Leite do Pai a descer. Os seus membros erguiam-se, as suas cabeças, e principiavam numa histeria que fazia o mundo passar pela sua passagem lentamente. Procurava qualquer indício entre eles que me indicasse quais marcar. Mas consumia as crias deixadas para trás, vindas de outro mundo, cegas e moribundas, translúcidas porque amanhecia. Alguma coisa tinha de rasgar o silêncio terrível.



Malak XXIII

No rio e nos rápidos pouco fundos e nas línguas de cascalho, não encontro o teu nome. Um bando de patos escuta-me a bater as minhas asas, distingo-os em lampejos ao erguerem-se contra o céu. A água forma remoinhos vagarosos e negros que luzem na margem do rio, e para além dos salgueiros-anões eu não encontro o teu nome. Se te chamar na paisagem escura, o meu lamento não terá outra origem que não a noite em si.



Malak XXIV

Havia dias que levantava as terras. Ateava piras nas montanhas desabrigadas e de noite, por vezes, afastava-me através dos prados e deitava-me no chão, no silêncio do mundo, e remirava a chama do firmamento por cima de mim. Nessas noites, pensava muitas vezes em Deus, imaginava-o sentado junto a um silêncio igualzinho àquele, numa paisagem em tudo igual àquela. Então, eu descansava, o halo sobre a minha cabeça a ocultar-se no Sol matinal, o Pai a converter-se num outro ser, desprovido de história, desprovido de futuro.

terça-feira, 24 de maio de 2016

Asas de Musgo




As folhas caem lá fora e a beleza levanta-se. Tudo se ergue no ar, na luz do Sol. Eu fecho os olhos e penso em ti, sejas tu quem fores, de olhos abertos e eu de olhos abertos, fendidos no incêndio da escuta. E quando eu morrer, enterra-me no musgo, que as minhas palavras ganhem silêncio e falem. E o ruído constante do escombro colossal que é o mundo há-de-se chegar para o lado. Um abraço há-de vencer as distâncias, e um pardal pousará na margem plúmbea do rio, se amanhecer, as penas rubras e azuis, como brasas retiradas da fogueira e que, por uma vez, não se apagam. Talvez eu acorde, talvez esteja Sol sob os teus ornamentos exóticos e eu ouça os riachos das fontes a correr e pense que o céu é uma boca sem chão e a vida um balão alaranjado sobre os Olivais Primeiros.

André Consciência

segunda-feira, 23 de maio de 2016

Eshter


dedicado à santa


O sangue correu para dentro
E docemente, correndo
Em enchente até aos recifes, 
Ela de pé delicado e cabelo de mel
Para acender a estrela no altar
E proteger a noite do seu despertar,

Espírito de Eva, no jardim sem espinhos
Abriu a boca muda num inchaço lunar:
Vaga que varre as baías, sonhos sem pé
Negro a dourar com a graça de virgens
Coração do meu coração a casar 
A noite em silêncio. 

E escala às estrelas em pulso com o Inferno
Alegra-te, dança, tremuleia e alegra-te
E que tudo esteja bem. 

André Consciência

quinta-feira, 14 de abril de 2016

Lira Insubmissa, 25


encontrado por publicar: 

Lira Insubmissa, fragmento 25 

189 - Valentino, gnóstico do sec. II, afirmava que Cristo comia, bebia, mas não defecava. 
190 - João Erigena, teólogo do sec. IX, dizia que Adão podia levantar o membro como levantamos um braço. 
191 - O desacordo com a merda é metafísico, a merda não é imoral, mas põe em causa o criador. 
192 - Como foi dito, o Kitsch é um biombo atrás do qual se esconde a morte. 

193 - Os movimentos políticos repousam não sobre o racional, sim sobre imagens, representações, arquétipos, vocabulário, que no conjunto constituem o Kitsch político. 
194 - Em vez de "viva o comunismo", diz-se: "viva a vida". 
195 - Nos tempos modernos, não é uma questão de acção ou de não acção, mas de dar espectáculo ou nada fazer. 
196 - A intervenção assemelha-se a um grupo de teatro combatendo um exército.

André Consciência