Malak XXI
I
A palidez do rio tremulava nas minhas faces. Abri uma clareira de ar com a mão a azular-se e colhi uma dúzia de búzios. Uma ave fitava-me na margem, chamuscada pelo Sol, e eu cantei um piar louco, desajustado com a voz dos anjos. Não te via, Deus, há tanto tempo. Procura-me. Dizia. Aqui, do outro lado do rio é sempre igual. Mas, pelo menos, depois deste rio não hei-de ver nenhum homem, fisicamente capaz e ausente, a querer ser uma rocha que nunca soube parar. Mesmo nas proximidades do lago e na região sulina do mar, os mestiços caminham de cabeça baixa, a cultura pesando-lhes sobre o pescoço. Uma vez, esperei durante oitenta e três anos num jardim do Golfo Pérsico, outra na costa oriental do Mediterrâneo, numa estreita península que se projectava para Oeste, quase uma ilha. A ave também lá estava, rubra, azul, a portar a glória da manhã mesmo na noite, mas só eu cantei. Raramente chovia, ainda que a precipitação não poupasse os planaltos circundantes e quedasse copiosamente. Havia uma árvore como as árvores em Casa, alimentada pelo rio que atravessa a Mesopotâmia, coberta de metais e pedras preciosas. Sentei-me e esperei por muito tempo, ganhei ramos, raízes, cascalho, e pus-me a brilhar, eu e a árvore, a ignorância, a selvajaria e a treva a rugir à nossa volta. Começou-se a levar ali pastoreio, aves e espécies domesticadas. E um casal, vindo de mundos distantes e centrais, alimentou-se dos meus cabelos, a sua existência animal não envelhecendo nem um dia. Quando acordei, a árvore ardia, o fundo do mar mediterrâneo a leste, que unia África a Sicília, afundava, e apenas as trevas exteriores haviam chegado. Aqui e agora, do outro lado deste rio, existe a voz seráfica de outro jardim. O concerto nunca acabou, e sinto que só eu canto...
II
Certa vez vi o Casal Celeste descer sobre um templo ao Pai Abandonado e dez dias depois, tornar-se homem e mulher. Recuperaram a consciência simultâneamente, de todos os tempos, de todos os lugares, mas vividos em par. Ergueram-se trôpegos, com três metros de altura, a pairar sobre Jerusalém, e os conflitos do mundo baixaram-se rasteiros, com um gemido longo, e calaram-se, perdendo a consciência, a personalidade, principiando a rir-se como crianças no convívio da família. O Casal também me viu, um peregrino ao meio-dia, e falando-me, a ave cantou na minha língua. Debaixo da Lua sentámo-nos, eu e a ave, a fazer planos para o dia seguinte. De manhã, erguemo-nos sobre os vastos jardins do mundo a beber o leite das nozes e o suco das frutas. Depois do meio-dia, punha-me a absorver a luz de certas regiões do universo. Então vimo-los subir os montes, prostrarem-se, a verter leite, um e o outro, dos seios. Sob o Sol, os seus corpos nus emitiam uma luz difusa, mas de noite a Lua vestiu-os e só as suas cabeças irradiavam, num uivo que alastrava a uma distância insondável.
Malak XXII
Tinha cruzado a fronteira que intersectava o meridiano e atravessado a estrada de quilómetro e meio para Sul e segui para Este, embrenhando-me nos vales, e transpus a garganta para Sul, embrenhando-me nas planícies, atravessei os montes e fui até às montanhas. Tinha no peito uma ferida já cintilante, no ponto em que Deus me mordera dois anos antes, algures nas montanhas sonoras.
Deambulei depois disso pelo Oriente durante um ano, Comia camelos e cavalos selvagens e marcava as árvores com a minha mão. Depois de tanto tempo a ignorância dos homens ainda era para mim um enigma, com os pés em tumulto, a deambular, a urrar e a debaterem-se através da vida, arrastando tudo no seu caminho até morrerem. Os homens evocavam em mim uma qualquer raiva de fera, uma fome, como se violassem uma velha ordem. Imprimia estes princípios: nunca regressar para junto de um vivo uma segunda vez, nunca atravessar a mesma estrada nem a mesma linha férrea. Nunca louvar o Sol duas vezes no mesmo local da terra, embora ele sempre no meio-dia do céu.
À noite, descia até às planícies e perseguia os macaco-leão, a vê-los rodopiar e fluir na sua própria massa, a poeira levantava-se como um fumo e eu recordava-me do Leite do Pai a descer. Os seus membros erguiam-se, as suas cabeças, e principiavam numa histeria que fazia o mundo passar pela sua passagem lentamente. Procurava qualquer indício entre eles que me indicasse quais marcar. Mas consumia as crias deixadas para trás, vindas de outro mundo, cegas e moribundas, translúcidas porque amanhecia. Alguma coisa tinha de rasgar o silêncio terrível.
Malak XXIII
No rio e nos rápidos pouco fundos e nas línguas de cascalho, não encontro o teu nome. Um bando de patos escuta-me a bater as minhas asas, distingo-os em lampejos ao erguerem-se contra o céu. A água forma remoinhos vagarosos e negros que luzem na margem do rio, e para além dos salgueiros-anões eu não encontro o teu nome. Se te chamar na paisagem escura, o meu lamento não terá outra origem que não a noite em si.
Malak XXIV
Havia dias que levantava as terras. Ateava piras nas montanhas desabrigadas e de noite, por vezes, afastava-me através dos prados e deitava-me no chão, no silêncio do mundo, e remirava a chama do firmamento por cima de mim. Nessas noites, pensava muitas vezes em Deus, imaginava-o sentado junto a um silêncio igualzinho àquele, numa paisagem em tudo igual àquela. Então, eu descansava, o halo sobre a minha cabeça a ocultar-se no Sol matinal, o Pai a converter-se num outro ser, desprovido de história, desprovido de futuro.