segunda-feira, 30 de novembro de 2009

"Lira Insubmissa"


Retrato de Abel Acácio Botelho - António Ramalho

Primeiro Fragmento:

1 - Trabalhar em equipa é semelhante a viajar em vela pelo mar, estamos dependentes dos ventos, ou seja, dos humores e condições de todos os elementos que a compõem.
2 - Trabalhar sozinho é semelhante a viajar com barco a motor, a desvantagem sendo a necessidade de suportar os custos da gasolina.

3 - Um problema assola as camadas mais maduras entre os intelectuais, à medida que a sua maturidade e com ela a sua racionalidade, cristaliza, assim a sua sabedoria diminui, na mesma medida em que perdem o discernimento no que respeita à sua própria estrutura. Os seus vícios, deixam de os ver, o motivo sendo simples, e que explicaremos no problema da razão:
4 - O "raciocínio" é um instrumento de excelência que permite a organização, sistematização e estruturação das "coisas" (para englobarmos tudo o que é ideia e emoção, acto e situação) vindo todavia com a mesma problemática que afecta a modernidade (já lá chegaremos). Procura justificar-se e bastar-se a si próprio, procura ser tanto causa como efeito, o motivo motor, a rota e a conclusão. Nenhuma motivação humana, nem uma, é de natureza racional - a razão analisa, não cria. Uma vez mergulhado a fundo na razão que o ignora, o ser humano está trancado e a chave fora deste idealismo, deste sistema, permanecendo inacessível.
5 - Este idealismo, ao contrário do que se possa pensar, faz parte do aspecto negativo da modernidade - aquele de se seguir luzes falsas. O idealismo dos dias de hoje é o informatismo que veio substituir o industrialismo dos dias de ontem. As ideias abandonaram a substância, não a possuem mais do que um placar electrónico, com uma paisagem paradisíaca e uma bela mulher nua. Estão a tentar distrair-nos para não escutarmos a voz das coisas, a voz dentro da voz dos que falam e do silêncio do que está calado - porque cantar a natureza dessas coisas, isso sim, e só isso, causaria uma verdadeira revolução para o estado (situação) moderno. Uma revolução, primeiro, em consciência e do indivíduo, e depois o mundo, com uma alma, abrir-nos-ia as portas.
6 (a) - Um exemplo das coisas tornadas em falsa substância, e da flagrância do truque moderno, está na consequência do guerrear dos hippies - e associações de direitos humanos que batalhavam nessa época - pelas liberdades sexuais - nudez, sexo antes do casamento, amor homossexual, mais liberdade para a mulher, etc - hoje feito em reclames de TV e videoclips de venda, estampado em embalagens de tudo o que é consumível ao ponto do sufoco da dimensão profunda no que respeita ao assunto sexual, tornando-o mecânico e despido de significado. Antes, o significado de todas as "coisas" modernas é estas serem consumíveis, ficando assim não menos virtuais que a moeda. De igual forma ao que explanamos respectivamente à tendência da razão, também o capitalismo se fecha nessa máxima, e procura ser tanto causa como efeito, o motivo motor, a rota e a conclusão.
6 (b) - Falando alegoricamente, e agora de um anjo como esfinge: A todos impõe um teste (sem sair ainda do campo da intelectualidade) - o da luz e o da escuridão, o de depois da luz ser escuridão enquanto depois da escuridão há luz. O caminho para o Éden só se abre de Noite, e esta é uma parábola dirigida aos idealistas.
6 (c) - Quando os ideais esquerdistas e os ideais liberais se expurgarem de todo o materialismo (mito e doutrina, nunca pedra e rio e pão), serão dignos do respeito dos sábios.

7 - Quando somos adolescentes, o amor olha-nos nos olhos e do seu hálito inalamos a morte, então, a morte está em tudo e em tudo está a sede de viver. Antes existe vida, sem nada se interpor entre si própria.

8 - Há no homem o ser-se bobo, e hoje começa a descobrir-se que não existe corte, indo então este homem à procura de rir-se de si próprio e ser bobo duas vezes, numa suposta ascese que desemboca em lado nenhum. Mas isto só os bobos, ou quase só os bobos, o sabem.


Horned Wolf

quinta-feira, 26 de novembro de 2009

Promessas 4 ***


Partida das Bruxas - Luis Ricardo Farelo


"Parecia que entrara nele uma parcela da fascinação amorosa daquela mulher, assim como no ferro entra um pouco da virtude do íman. Tratava-se, verdadeiramente, de uma sensação magnética do prazer."

"O homem sentia a presença da mulher deslizar e misturar-se no seu sangue até ao ponto deste se tornar a vida dela, e o sangue dela a sua própria vida."
G. d'Annunzio

"Quando me uno a uma mulher a percepção através do sangue é intensa, suprema... Dá-se a passagem não sei exactamente do quê, entre o seu sangue e o meu, no momento da união. De tal modo que, mesmo que se afaste de mim, permanece entre nós esse modo de nos conhecermos através do sangue, mesmo que se tenha interrompido a percepção através do cérebro."
D.H. Lawrence

"O sangue é o grande agente simpático da vida, o motor da imaginação; é o substrato animado da luz magnética, ou luz astral, polarizadas nos seres vivos; é a primeira incarnação do fluido universal, é a força vital materializada."
Eliphas Levi



How We Became Fire - Moonspell

terça-feira, 24 de novembro de 2009

A Morte Comer Para Viver


Ruínas do Convento do Carmo - Wolf38


Sento-me no chão frio deste mosteiro, que foi barrado a cimento pelas portas e de onde brotaram as sementes daqueles depois de mim.
Reconheço, aqui na escuridão em que a minha sombra é o pátio e depois do pátio o mundo e a seguir para dentro do mundo, ser um destroço perdido dessa penumbra móvel, que sou um fruto da árvore branca da ignorância. Em todos nós, que cantámos neste solo regado, doentes com o medo e o nosso medo cheio de criação, a amável memória do caos no rosto d’Ela, que o Inverno sepultou de brancura e gelo. No fundo de todos nós, doentes com a organização, como uma flama albina dentro do espelho, a saudade. Geração após geração este esquecimento pueril. Do medo do escravo construimos o temor do guerreiro. Da saudade inútil esculpimos poetas e lançamos-los para fora destas paredes. Edificámos um forte contra a poluição da tua indiferença. Envelhecemos e morremos incontáveis vezes, fortalecendo as paredes com os nossos ossos.
Uma noite, a maçã caiará sobre este caixão de cristal quebrando-o todo, as canções da Lua serão Carne. Depois, o Mundo não será uma esfera, mas será uma continuidade de mundos.


Horned Wolf

domingo, 22 de novembro de 2009

A Sede


Rede de Esgoto

A tez negra da pele. As expressões. Peculiares. Os barcos europeus. Ficam encalhados na costa. Maciços. Na areia. A sonoridade enrolada da água. Os vidros. Cordas. Pele queimada. Luzidia. Pele de negro. A corda. Esticada. Quase rompe. Linhas. Linhas que são feitas de homens, os homens todos feitos de músculos. O vento puxa para um lado. Os homens puxam para o outro. O vento. Não possui rosto. Não tenho pé aqui. O vento. Não possui assobio. Observo nas ondas. Martelos quadrados. A ferrugem. É o estuque dos barcos. Os homens sentam-se parados. Absorvem o sol. As mulheres dançam em procissões, com pedrinhas de muitas cores que soltam tons que eu não ouço. Os olhos das mulheres brilham. Verdes. Pálpebras núbias. Reconstroem os barcos. Os europeus não lhes podem roubar a mãe. Os europeus não lhes podem roubar o mar. A não ser que electrifiquem também a rede marítima. Não consigo sentar-me tanto tempo como eles, quieto. Com o Sol. Treinei. Na Europa. Treinei. Treinei horas de meditação. Treinei horas de posturas. E não consigo ficar parado como eles. O próprio acto de estar parado inquieta-me. Como um movimento. Irritante. Merda. O rapazinho. Os meus lábios não sorriem. Movimento de sucção constante. Sorvem ar queimado. O rapazinho e o lenço que ata à volta da cabeça bonita dela. Que prende perto da nuca formosa dela. Ela. Ata-lhe tranças. Depois o lenço. Na praia. De noite. Poetas mortos no rochedo. Observo nos espelhos. Ardor nos globos brancos. O perfume dela. As minhas narinas uma queimadura. Carne podre. O perfume dela: ondas do mar. O perfume do mar. Barcos. São barcos de madeira. Quebrados. Urram. Ele. Urram. Ela. Gestos. Gesticulam como bárbaros. Planeiam comandar os barcos fantasmas. Ele sente-se feliz. Ele vê-a a rir-se. Ele vê as estrelas e o som das estrelas no silêncio dos olhos alegres dela. Alegres. Sonhadores. Pega numa cana. Ela. Faz serpentes na areia. Vê o som do cano que rasga a praia. Ele. Pega numa cana ele. Faz círculos para apanhar a serpente. Um pequeno. Ela. Evita. Maior. Outro maior. Ela perfura. Ele ri-se. Ela ri-se. Mãos. Dedos. Ele a adorar os dedos. O rapazinho. Que os dedos dela são os dedos mais bonitos que viu. O olhar dela é mil abraços. Quentes. Como sopros quentes. No inverno. O cheiro da madeira podre. O armário. O grito mudo da carne putrefacta. Um grito de revolta. Contra a morte. A vida. É liberdade. Ele. Pega numa cana. A casota em ruínas perto do entulho. Riem-se. Ele. Conta uma estória. Uma estória: vivia ali um eremita muito sábio que aprendeu todos os mistérios do universo com um caranguejo. Ela, continua uma estória. Beijam-se. Beijam-se. O barulho entaramelado dos bichos da madeira. Lutam com as canas, à espada. Ele ganha sempre. Depois. Abre os braços. Sacrifica o coração. O sorriso dela. Golpeada. Depois da derrota. Os canos do esgoto. Cortam a praia.

segunda-feira, 16 de novembro de 2009

O Espelho

The Cyclops - Odilon Rendon


Se, durante demasiado tempo, fixamos o espelho, o nosso corpo é invadido de uma dormência.

Os nossos olhos incendeiam-se, e o nosso corpo não conhece as labaredas.

sábado, 14 de novembro de 2009

O 13º Cavaleiro de Vénus


Alma a Vagar na Pradaria - Guilherme de Faria


O cavalo golpeia o rio
Branco como o Sol
Nunca foi montado
E nunca atravessado.

De noite, o cavalo dorme
E sonha, os banquetes de homens
Perdidos na fluidez
Do chão.

O cavaleiro monta a morte
Negro como o breu
E da Lua, vê a sorte.

Se o Sol o acorda, com a brisa
Não se lembra da sua donzela
E as suas mãos são pedra selada
Contra rosa.

Vai, depois, uma morte
Acender tantas
Que a inocência oculta
E o azul sepulta.

Agora o lago, sacia
Bandos de cavalos selvagens.
O céu trespassa os exércitos
Vertendo penas, são carcaças.

Horned Wolf

sábado, 7 de novembro de 2009

Ó Poesia Sonhei Que Fosses Tudo


Tudo é Vaidade, Charles Allan Gilbert


Ó Poesia sonhei que fosses tudo
E eis-me na orla vã abandonada
Uma por uma as ondas sem defeito
Quebram o seu colo azul de espuma
E é como se um poema fosse nada.

Sophia de Mello Breyner Andresen

sexta-feira, 6 de novembro de 2009

Colheita


Rússia durante a Fome de 1921-1923


Aproximam-se, da falésia
Com paz nos cadáveres
As crianças, e curam
A crença da tortura
Numa dança.

quinta-feira, 5 de novembro de 2009

Ninguém, a Terra

Dedicado a absolutamente ninguém


Eu e o maldito Cais do Sodré

A Lua, na minha aldeia, é sempre grande, e faz uma rota igual todas as noites. Saúdo o Sol quatro vezes ao dia, e sei o seu percurso exacto. Na minha aldeia as estrelas ainda não estão poluídas. Sei de cor o crescimento da vegetação, quando a queimam, ou a cortam e aparam. Sei de cor o canto do corvo, e dos pássaros que se aninham no meu telhado e deixam cair palha pelas frestas das paredes. O mocho, os morcegos. A minha aldeia não tem muros, só planuras, e depois o meu terraço decorado com estatuetas de corujas e rodeado pelas trepadeiras. Sei de cor o movimento das trepadeiras, por isso parecem estar sempre paradas, como a Lua, o Sol e as estrelas. Até os cavalos parecem estar parados, se galopam. Os porcos e as ovelhas. A minha aldeia é um túmulo aberto e ninguém a visita. Na minha aldeia moram idosos e, de todos os estabelecimentos comerciais, existem somente cafés, onde se juntam com conversas sobre mulheres e a juventude que passou. São sempre as mesmas pessoas e também estão paradas. Conhecem-me de cor, o meu vulto vestido de negro. À noite, sento-me sempre só e não gosto de conversar, embora sorria de quando em vez ao ouvir algum disparate divertido. Ninguém me incomoda. Tornei-me na minha aldeia. Não sou outra coisa, quando saio da minha aldeia sinto-me a viajar entre sombras, sendo uma sombra. Os habitantes da minha aldeia são como as árvores da minha aldeia, são parte do terreno e não pessoas. Lá fora, por vezes, quando as bocas se beijam, as sombras, a minha e a outra, parecem tocar-se, numa ilusão da alma. Depois tudo volta a ser terra e folhas ao vento, como sempre foi. Terra e folhas ao vento na minha aldeia.

terça-feira, 3 de novembro de 2009

"Darkcell"



Não voz, no campanário
Para descrever a mudez do poeta
Que se aquieta, na viuvez
Dançada pelo bobo, castelo de cartas
Gracejando a sua queda,
Entre todos e nos quartos
De luz acesa nas noites apagadas.