quinta-feira, 10 de dezembro de 2009

A Boca do Mar Comeu o Lobo


Adam and Evil - colagem e manipulação de Babalith


Dos musicais carroceis da felicidade com todos os seus precipícios, o feiticeiro retorna aos lodaçais do abismo e, lentamente, volta a crescer nele a pele de tubarão. Dorme um sono lesto e de rebeldia. Acorda cheio de piolhos falantes e persegue os seus sonolentos dias numa tentativa suicida de se separar de si mesmo para se tornar a si mesmo. Vomita tudo o que os homens, nas suas prisões lá em cima, com horror guardam. Coça a pele e volta a adormecer, sonhando sobre mares traiçoeiros. Deixa-se visitar por um hermafrodita no qual tudo quer tocar e nada o pode conseguir. O hermafrodita brilha, porque tem sangue forte de anjo. Ao feiticeiro quase que o hermafrodita aparenta o perfume da sabedoria, não soubesse melhor. Jogam xadrez e o hermafrodita repara que o feiticeiro tem muitas cicatrizes. Lança, não sabendo o que é ser homem ou mulher: “Qual o maior desejo humano?”. O feiticeiro responde com a ruína. O metade-anjo: “Não será ruína, em vez, o seu maior medo?”. O feiticeiro procura rir-se, mas a sua boca é uma cicatriz que nunca se fecha e por isso nunca se abre. “É de supor que a procura humana é pela felicidade, mas a ruína abate-se irremediavelmente sobre a sua condição, asfixiando-a. É, sim, na morte que o homem encontra satisfação e no seu prolongamento que ele encontra a felicidade por manifestação do amor. A isto vem substituir a ruína, ou a espuma da vaga, a espuma da vaga cria a pele do grande tubarão.” Coça-se e continua: “Um dia, o próprio homem, alimentando-se de pedras, se tornará pedra e ruína, para conhecer, quieto, os ventos e a terra e os céus. A seguir, será chama, e sem apagar ou queimar o seu corpo negro. Não, o desejo maior do homem é a ruína, é sobre isso que canta o amor sob o engodo quer do sofrimento quer da felicidade.” O hermafrodita sorriu, com uma inocência eterna e virgem. Não sabia jogar xadrez mas gostava de brincar com as peças. “E a História?” Perguntou. “O que tendes com a Historia?” Ripostou o feiticeiro. “A História ergue-se sobre a ruína.” Depois das palavras do hermafrodita, o feiticeiro grunhiu: “Mero rasto de cinzas, e a sua posterior disposição ao vento. Nada lá se encontra a mais do que na contemplação das mutáveis e insubstanciais nuvens no Outono ou na Primavera, pois tudo o que está abaixo dos céus não lhe é superior, excepto quando da espuma da vaga se cria uma ruína que lhe sobrevive, por quanto tempo sobrevive.” Enquanto escutava o feiticeiro o hermafrodita engoliu uma torre. Riu-se com canção. “O que é que isso interessa?” O feiticeiro riu-se, rouco. “Não mais do que um grito na penumbra, caro hermafrodita. Não mais do que um grito na penumbra.”

1 comentário:

  1. Alimentando-se de pedras...
    serão essas pedras, as necessárias para por na balança? :)

    Ruinas...também são pedras...amontoadas!

    Tudo muda, mas a essência permanece...não pode ser alterada, apesar de tanto rabearmos para tal...são gritos na penumbra..

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