Cronos
Vejo, de uma montanha, o lago abaixo. No lago, um barco. A tripulação fixa os olhos na minha direção, sem me ver, nublados de segredos e ilusões.
Desço para a praia, também eu um pouco apático, um pouco ansioso.
Na praia, escuto o galope de cavalos. Uma negritude invade a vista.
Alguém que partiu retorna por uma porta aberta. Decido entrar. Absorvo rapidamente: um trono na sala, um cadáver no chão, um caranguejo depois dele. A minha magia é fraca. A minha palavra célere. Escuta-se o som de alguém que arrasta a mobília. Desperto:
Vejo agora um cavalo com armas medievais a carga. Ao lado, uma pedra que jaz no passado, e sobre ela um pombo que toma voo no futuro, deixando a descoberto uma flauta. No horizonte aproxima-se uma tempestade densa.
No lago agora trémulo nada uma baleia distraída. Um alegre cheiro a petróleo. A baleia move-se continuamente, arrastando uma rede de pesca com ela e todas as palavras (todas as ciências). A mudar de aparência, corro para a gruta:
Há água no chão. Quem quer que seja o retornado, tosse. Reparo que à entrada da gruta o terreno é rochoso. Escuto, novamente, o galope de cavalos; no céu, um relâmpago começa por confessar os segredos dos mortos que dançam. Não muito longe, uma floresta seduz-me. Tudo principia a amarelar no arvoredo, e entre o cansaço, chega finalmente o sábio burro. Agora, o amarelo reconcilia-se com o encarnado. Quando a vista regressa, vejo um homem africano, a pele negra molhada na água do amor. A minha aura resplandece. Ali está a porta aberta, e o homem, e eu atravesso:
Dentro do quarto, algum felino pincelou a caos e no entanto, a varanda dá acesso a um jardim animalesco. Sim... é o jardim que alberga o lago. Uma moeda dourada cai do passado para o futuro, embatendo e afundando na superfície aquosa. Outra moeda se lhe segue. Depois, novamente o odor de petróleo.
Estou na montanha com cheiro a peixe e o meu trono perto da falésia. Não tenho fraquezas mas o som crescente do galope, a intensidade vermelha. Na gruta, o morto foi deposto sobre uma mesa e a água continua a correr. O morto reluz. Chegam os tambores tribais, a contar a estória da obsessão em si mesma, a água levanta sobre a mesa e o homem flutua.
Agora, entre o fogo de artifício que se reflete no lixo metálico e no leite azedo, o homem africano traz um jovem loiro e de roupa suja pela mão. Quando entram no lago, saem limpos, e eu começo a menstruar. Á direita do homem, a mesa que erguia o morto deixa agora crescer erva. É também visível a ereção masculina.
Na areia molhada e lamacenta da gruta de paredes negras jazem os meus pés. Há ali uma fornalha, mas apagada, as brasas abaixo de si. Um dia escutei o galope dos cavalos, e as paredes receberam a luz, deixando entrar uma cor ciana. Olho, de sexo murcho, o rio que atravessa a árvore despida. Algo flutua por ali, e na margem um sapato fedorento que me angústia e amarelece os sentidos. Está frio, húmido, e o céu tempestuoso abana o nevoeiro tudo à volta. Uma mulher desfigurada pela idade bebe rum sobre um declive do rio tóxico. Com bravura, fito o triângulo de evocação e os meus pensamentos mudam, a água aquece e no seu borbulhar traz pedras preciosas e ramos caídos à tona. Escuto o som do marejar e inalo o seu perfume. Emerge uma harpa prateada, mas manchada, de sangue. Sinto-me ansioso.
Dizia, todavia, que o triângulo de pedras está situado sobre a erva amarelecida, queimada pelo Sol, perto da queda de água, onde nada um cão, e além fica o campo repleto de corpos, camélias e perfumes florais exalados. O homem negro está morto, a meu lado, o jovem de cabelo dourado geme de dor: um porco que devora os cadáveres
André Consciência