domingo, 23 de dezembro de 2012

Ventre Vazio de Portugal


Penteado - André Consciência




Um homem só possuía de si as mãos
Mas a estrada: a poeira do tempo
A terra fulva das cidadezinhas esmagadas
O céu cru do trigo e das ovelhas
O Sol queima o rosto magro de um povo inteiro
Como uma máscara dourada

A Espanha com a sua ilusão socialista
A grande ilusão burguesa entre-duas-guerras
Com as cores do Alentejo
Elevando um cântico despojado,
A universalidade da diferença
A solidão do pensamento a criar
A partilhada história

Chiu, cala-te ó mundo revolto
Que Portugal parou! E de Lisboa
Ao Alentejo, viam-me a cavar um fosso
Incansável como a raiz do mal
Que ao medo se amarra e que os homens
Arremessam em punhados de miséria

Cala-te e olha para mim
Vê se também eu que cavo para preencher
Com palavras a terra no plúmbeo amanhecer
Não sou um camponês, com o meu rosto escondido
De ferida e estrela
E se não tenho o meu direito
Sobre esta terra sem limites
Sobre as sombras que me não entendem
Eu, um bastardo da luz directa
E me arranco daqui, do poema, de ti!
Apenas deixando as obscuridades emanadas
Da social-mitologia!

Sofri sobre ti, sobre ti amei e sofri
Com a violência primitiva do espírito
Que te esculpirá um corpo, e tenho direito
E cala-te porque quer a arte ter palavra
Expressiva e não didáctica e para lá
Das colinas! ou das ruas árabes
Ou do que foi mais antigo no mundo
E na espada erguido Eros
Rompa então a sujeição
Ao pai obscuro!

Bastardo da luz directa numa vila
Da província, abro a porta sobre a treva infinda
Nomeio um novo ser, um abismo humano
A partir do mundo condenado, esse, de dignidade e liberdade
Impregnado.


André Consciência

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