Vejo, de uma montanha, o lago abaixo. No lago, um barco. A tripulação fixa os olhos na minha direção, sem me ver, nublados de segredos e ilusões.
Desço para a praia, também eu um pouco apático, um pouco ansioso.
Na praia, escuto o galope de cavalos. Uma negritude invade a vista.
Alguém que partiu retorna por uma porta aberta. Decido entrar. Absorvo rapidamente: um trono na sala, um cadáver no chão, um caranguejo depois dele. A minha magia é fraca. A minha palavra célere. Escuta-se o som de alguém que arrasta a mobília. Desperto:
Vejo agora um cavalo com armas medievais a carga. Ao lado, uma pedra que jaz no passado, e sobre ela um pombo que toma voo no futuro, deixando a descoberto uma flauta. No horizonte aproxima-se uma tempestade densa.
No lago agora trémulo nada uma baleia distraída. Um alegre cheiro a petróleo. A baleia move-se continuamente, arrastando uma rede de pesca com ela e todas as palavras (todas as ciências). A mudar de aparência, corro para a gruta:
Há água no chão. Quem quer que seja o retornado, tosse. Reparo que à entrada da gruta o terreno é rochoso. Escuto, novamente, o galope de cavalos; no céu, um relâmpago começa por confessar os segredos dos mortos que dançam. Não muito longe, uma floresta seduz-me. Tudo principia a amarelar no arvoredo, e entre o cansaço, chega finalmente o sábio burro. Agora, o amarelo reconcilia-se com o encarnado. Quando a vista regressa, vejo um homem africano, a pele negra molhada na água do amor. A minha aura resplandece. Ali está a porta aberta, e o homem, e eu atravesso:
Dentro do quarto, algum felino pincelou a caos e no entanto, a varanda dá acesso a um jardim animalesco. Sim... é o jardim que alberga o lago. Uma moeda dourada cai do passado para o futuro, embatendo e afundando na superfície aquosa. Outra moeda se lhe segue. Depois, novamente o odor de petróleo.
Estou na montanha com cheiro a peixe e o meu trono perto da falésia. Não tenho fraquezas mas o som crescente do galope, a intensidade vermelha. Na gruta, o morto foi deposto sobre uma mesa e a água continua a correr. O morto reluz. Chegam os tambores tribais, a contar a estória da obsessão em si mesma, a água levanta sobre a mesa e o homem flutua.
Agora, entre o fogo de artifício que se reflete no lixo metálico e no leite azedo, o homem africano traz um jovem loiro e de roupa suja pela mão. Quando entram no lago, saem limpos, e eu começo a menstruar. Á direita do homem, a mesa que erguia o morto deixa agora crescer erva. É também visível a ereção masculina.
Na areia molhada e lamacenta da gruta de paredes negras jazem os meus pés. Há ali uma fornalha, mas apagada, as brasas abaixo de si. Um dia escutei o galope dos cavalos, e as paredes receberam a luz, deixando entrar uma cor ciana. Olho, de sexo murcho, o rio que atravessa a árvore despida. Algo flutua por ali, e na margem um sapato fedorento que me angústia e amarelece os sentidos. Está frio, húmido, e o céu tempestuoso abana o nevoeiro tudo à volta. Uma mulher desfigurada pela idade bebe rum sobre um declive do rio tóxico. Com bravura, fito o triângulo de evocação e os meus pensamentos mudam, a água aquece e no seu borbulhar traz pedras preciosas e ramos caídos à tona. Escuto o som do marejar e inalo o seu perfume. Emerge uma harpa prateada, mas manchada, de sangue. Sinto-me ansioso.
Dizia, todavia, que o triângulo de pedras está situado sobre a erva amarelecida, queimada pelo Sol, perto da queda de água, onde nada um cão, e além fica o campo repleto de corpos, camélias e perfumes florais exalados. O homem negro está morto, a meu lado, o jovem de cabelo dourado geme de dor: um porco que devora os cadáveres
Branco como a chuva gelada, cor de mel e feito de fogo negro, percorro a floresta nevada que se estende da Rússia de Leste, atravessa a Europa e desemboca nas Américas. Encosto-me ao pinheiro, as lascas secas e escarpadas atravessam-me na luz, as camadas húmidas e bruxuleantes. Uma ave cor de uva bica uma pinha e mistura-se com o ar, vital, e dá lugar ao javali, mas só o corvo ao cimo sabe o nome que pronunciam.
II
As árvores secas atravessam os vales como rios picados. A neve é o meu nome. E eu procuro-te. Procuro-te no sol frio e boreal. Durante o inverno, os dias são tão curtos e a temperatura tão baixa, que o crescimento fica suspenso. As árvores brancas e pontilhadas de amarelo suportam pouca vida. Mas a terra respira. Os rios.
III
Os salmões ancestrais elevam-se com a névoa branca e dourada, do azul crispado. Há um canto de águia, intermitente, como uma canção tua que se esqueceu. As águias são agora como borrões negros nos fios albinos e arbóreos. Quando a névoa os começa a amar, também eu estico as asas doridas e magoadas pelo gelo. Um qualquer tronco caído, e uma cabeça de plumagem branca e lança de ouro solta um canto fúnebre.
IV
As rapinas nidificam, a neve cai tão abundante que se tornam invisíveis entre escombros. Um vulto triste de reis e rainhas celestes de corpos pesados com a água abismal. Enquanto o inverno avança a precipitação lenitiva torna o tempo descendente e vertical. Também o ar se torna rio nebuloso.
V
Adiante, os ventos trazem ar húmido e quente do Oceano Pacífico, e eu cresço o ano inteiro, impulsionado por um desejo misterioso de regressar à alma que me fez nascer. No fim do verão, o Sol tostou a floresta tão intensamente que está tão seca como palha. Cabelos de fogo irrompem dos castanhos como uma água ruiva e os ramos pendem para baixo num abraço. A terra vomita uma densidade cinzenta. O vermelho sobe aos céus. De repente, o teu semblante na água quente, móvel e ascendente. A tua destruição aparente e a tua bondade plena. As árvores são lanças negras despidas contra a vastidão estelar. E um demónio de pó baila em espiral, uma coluna e um corredor até à nossa morada. O vento, ao varrer o chão da floresta recém exposto, levanta turbilhões de cinza. Ergues-te agora do solo sem vida. Eu vivo em ti, que te lembras, vital.
Os pássaros erguem-se com fogo
E cospem na luxúria dos homens
Canções sem fim
Os imortais ficam
Tudo se abre
Cada poro do mundo
A vulva mostra a noiva
Não há sol além de mim.
6.
A boca expande-se depois do corpo
Shekinah deita-se no mantel azul
E chove com cores conhecidas e desconhecidas
A luz ergue-se da terra e a terra também é um arco
Eu estou no olho da miríade
A boca abre-se além do ovo
O que sai não pode ser dito
Mas é
Adonai salta do meu pulso.
7.
Morto, Adonai larga a espada
E a espada é um homem, uma mulher
Acima das nuvens cai, sem cessa, o Sol
A rainha senta-se, lânguida
A coroa dispara
Mas os meus pés dançam sobre a sua luz
A minha boca é um túnel, cá fora
Mas cá fora é um túnel, dentro
Para outro lugar.
8.
A divina embriagues dita
A realidade escreve
Uma torre senciente desce
Ao mundo sem fundo
Nada mais será eterno
Que o espírito move
E a morte perde o ser
Ó, coroa irradiada dos umbrais
Consome-te a ti mesma.
9.
A pedra era pedra antes e depois de a ser
O seu vulto está aqui, agora
Além de si, está ela própria
Assim canta o poeta
E a montanha ergue-se de uma só
Pedra
A folha que cai levanta
Há ouro e ouro
Poeta, poema.
No céu as mãos são rosa, não pesam e tudo erguem
Na alma a memória é futura, não foi e fará ser
No campo, as cearas erguem-se agora até às estrelas
O véu sobe também para revelar a nudez noiva
A esposa remove a morte do orgasmo e o seu fim
O espírito sagrado senta-se a seus pés
Como aos pés do guerreiro a coroa de D'us
O vinho sobe e engole o céu, as cearas, o vento
Tudo será como sempre foi.
Em redor do fogo há uma voz que leva
a morugem a perder-se na pastagem da Primavera. Sobre as camélias,
sob o capuz alto e por cima de cascos vermelhos o homem com metade do
rosto mordido por estrelas montava brando. Um rio a rasgar-lhe o
peito com os pensamentos incessantes dos povos, no lugar do coração
a pedra verde de todas as pedras palpitava, e o sangue regava a
vegetação e as papoilas e os lírios e os cravos erguiam-se do topo
das suas pequenas torres e minaretes para gritar ao vento: «nada
acaba, para que tudo comece, e por isso os astros devoram e têm
fome» Mas ao longe, sobre os ombros egípcios de uma menina despida,
cai a Lua Nova e ele vê, ela ergue uma pequena pena ornada desse um só olho que a observa contra a luz das quedas-de-água e o homem sobe, galopando o céu nocturno para romper o azul, regar o inferno e levar a justiça à boca dos
cães selvagens. E um dia, sem autor algum, arderá a esperança e a
lembrança no pó das luas negras.
Montado num boi observo com a ave de gelo ao ombro. Três mulheres sentam-se à porta da fogueira e miram as estrelas de pedra. Inteligente e nas rachas da chama cresce uma trepadeira de forte perfume.
Eu tinha trazido dois cães lobo, a minha sombra cinzenta e as minhas pernas compridas, ela uma sugestão, violetas na mão disforme, cabelos de prata interminável.
Acocorei-me e voltei a cobrir-me. O dia acabaria por nascer além da orla da floresta, mas as estradas já não me incomodavam.
II
A chuva começou a cair em impiedosas bátegas de água. Havia um travo gélido no ar. Tu enegreceste ainda mais como se caísses com o crepúsculo a estender-me um manto de ouro. A minha cabeça baixa escorre como água mas tu uma fogueira em cima da égua contra o chicote do vento e da chuva.
Primeiro atravessava o céu no fogo líquido da faísca da vida e da morte, depois massas de pedra surgiram, uma deslumbrante queda de areia, a abóbada negra e depois da cor do fogo. Enquanto isso, alguém escrevia, à proa dos raios vermelhos no mar e nas nuvens, pousou numa ilhota do mar Cáspio e encontrou vestígios de conchas e duas cabanas cobertas em vidro, depois, as casas com pedras brancas, negras e vermelhas, nos pátios das quais escravos e senhores bebiam e dançavam juntos. Mais além, uma muralha de ouro, templos ornamentados de jóias e paredes de prata, e o Sol sentado. Nas proximidades, um crânio de rena, e na costa, o fogo e a água continuavam a travar combate, e os homens eram enterrados com as faces voltadas para Oeste, a contemplar completamente surpreendidos as florestas, as casas e as cidades. A fome não existe aqui, mas existem os dilúvios, nas alturas celestes o barulho das chamas.
II
Quando os homens se multiplicaram, construíram um altíssimo zigurate, fundindo as suas pedras com um relâmpago monstruoso, para que aí pudessem encontrar refúgio no caso de o segundo mundo vir a ser destruído. Ali, ensinava astronomia, com vista para as pirâmides meio-cobertas pela lava sólida. Os monarcas e os guerreiros passeavam-se nos largos ostentando cruzes ao pescoço. Todo em redor, vagas altas como montanhas, furacões, explosões vulcânicas e barbárie. Um peixe e um pai caminham-se pela costa. Uma ave metálica pia. E voam os homens-pássaro sobre os braços do mar e em redor da Lua. As luzes das estrelas apagam-se e elas sobem o céu. O meu rosto ilumina-se. Preparei-me, levantei-me e atravessei a vasta terra em que os impuros dormem sob uma massa de meteoritos. Os meus membros movidos à força celeste, o meu peito à potência do Universo, o meu semblante dez mil sóis, que só escondia para chorar a falta dos meninos do Zigurate, cujo tempo, naquele mesmo instante, desfigurava os corpos, lançando por terra as unhas e os cabelos e os vasos de barro e esbranquiçando as aves e morrendo nas regiões exteriores do espaço e por cima dos ventos.
Perdi-me em vales cheios de neve ou escondi-me nas catacumbas do fundo das montanhas. Acendi uma luz no abismo que assegurava o crescimento das plantas. Ás vezes disfarçava-me de mercador, pastor ou soldado, e surgia de súbito no deserto, montado a cavalo para dar presentes aos mongóis. Nas montanhas surgia a avançar na obscuridade de tocha na mão, e prestava socorro a viajantes. No rio Dichu, cultivava flores azuis no gelo que oferecia a alguma exploradora. Raramente, de noite, rodeava-me de massas fulgurantes que enchiam o céu de línguas de fogo e punha-me a pairar, o olhar voltado na direcção da Ilha Branca.
III
Ás vezes, quando acendo as pedras negras para aquecer a água dos banhos, o pensamento ainda foge para os dias primevos, e consigo ver a ave a arder, agigantando as árvores sob o seu calor e emprenhando os animais. Então, vinha o desejo de que a minha lâmpada eterna algum dia se apagasse também.
Escutava-se uma respiração
familiar Um perdão distante que alterava o rumo
Do vento, das pedras, das casas Da
vista que se escapa dos olhos
Para longe, e as paredes vazias
Surgiam no alto do campanário Fechava
os olhos com força Á espera da ausência do tempo
O ar estarrecia, claro, altivo Frio,
e eu sozinho, inteiro
E na parede um riso de
criança Arrastava a mão para lado nenhum E um dia cairá uma
chama Alta, do alto das campainhas, Como um aviso, e a memória
efervescente
Acenderá todos os lugares Os campos
a arder e as crianças a dançar
Sob o jugo do fogo e a habitar as
paredes Evocarão um nome que ninguém conheceu E eu poderei
rir, e a minha respiração Há-de ser familiar, os cabelos o
trigo A palavra o ar.
poema poeirento encontrado aquando de arrumações para sair de um campo que campo já não é
A caveira à ladeira da porta
Deixa entrar no bar
As mortes de Lisboa
E não posso deixar de pensar
Que as grandes cidades de fantasmas
São habitadas pelos vivos.
Nos campos, sopra o vento
No vento, o fôlego perdido da cidade
Até que a minha terra límpida
E brilhante
Seja o esqueleto de nunca ter sido
Cidade.
As palavras são triviais
A cabeça do girassol é uma lâmina
A ponta do alfinete um estranho oásis
A criança que lava a cabeça no rio
A tua sombra
E a mãe que porta o rosto de Deus
Uma clareira no verde
E não o sabem as palavras
Importa a nobreza das camélias
A ancestralidade das pedras
O vulto perdido das searas
Todas estas coisas que abrem
os livros.
O cisne canta ao longo da água como num tapete persa. Atravesso-o. As três árvores de granito ficam também para trás, regadas pelas suas três fontes, depois, por seu mantel, a superfície de cristal manso e líquido onde as árvores se põem a subir infinitamente para o céu, continua e visivelmente, e eu suspiro um suspiro que adapta a flora e enriquece a fauna, o veado, a lebre, a gazela. Tudo é móvel, soprado pelo poder doce, e se fixa à minha aproximação. Então, a aurora ilumina a primeira montanha, tingindo de vermelho as pedras do céu, e outra água principia a cair, onde se deleitam arcanjos femininos de Zoroastro. Pensava ter encontrado a morada que segrega a luz que sou, mas a minha luz não vinha do chão ou do céu ou da treva do pensamento, os germes cresciam e avolumavam-se numa forma em que cada gesto é um significado e eu permanecia sozinho, como um objecto iluminado cuja luz tem de ser objecto.
II
Aqui matei o meu filho, e ele ergueu-se com as árvores que sobem infinitamente. Já nada vem do céu ou do chão ou da penumbra do pensamento. As coisas segregam luz, a minha mão marca a pedra e o horizonte perde distância e as alturas profundidade e ganham presença. Estou cheio de flores, rios, árvores, pássaros, montanhas. O céu azul. No céu, sou o céu, no mundo, sistema nervoso. Ali, lúcido e sereno, diáfano e translúcido, compreendendo a inexistente deslocação dos corpos. Depois, rebela-se o mirto, o jasmim, a manjerona, o lírio e as formas femíninas que penetram as águas recebem o fogo e concebem, luz sobre a luz, os homens retêm a respiração e inicia neles uma respiração outra.
Há um coração no circulo de pedras, silente e rumorejante no seu silêncio, que canta os dias que fui e depois se debruça sobre o tempo presente e encontra tudo isso nos traços das suas próprias mãos. Depois há uma concha, contendo uma pérola, que foi ofertada sobre o antigo altar. Um anjo sobe e materializa-se, a cantar com as penas que roçam umas nas outras. E outro anjo desce e beija-te, lânguida ao longo das pedras como uma cobra imensa, e ajoelha os alces e levanta os dorsos das baleias do ártico e vocifera o frio mudo e a claridade. Eu abro os olhos, pendo sobre a ternura dos dias e balanço-me no pêndulo de fogo do teu ventre, o teu peito a florescer uma floresta de urze com lagos, o teu sorriso um palhaço de sangue reforçado pelas dobras do desejo. E onde a pele era um deserto a neve derrete-se, escoalha-se, revolve-se, ergue-se e canta na boca do anjo, um verme de luz insinuante. Anda, senta-te. Teçamos o mundo e as águas no fundo. Alguém voa, com os teus cabelos e o meu rosto, os teus olhos e os meus dedos. Alguém se senta, a tecer os dias sobre os quais os alces correm e o gelo chora e a cabeça alva da Lua se torna rubra. E não tenhas pena da morte, todos os homens morrem aqui.
O palácio do Príncipe é uma mulher de paredes brancas e janelas voltadas ao crepúsculo. As janelas são muitas e para lá das gloriosas sacadas de ouro escuta-se o sussurrar das princesas ao longo dos beirais esculpidos. Ali, os poetas vestem-se de peles ou de seda e andorinhas migram em pequenos círculos sempre no mesmo céu. Os pomares decompõem-se com as flores que florescem, os lagartos brilham esticados e imóveis ao Sol de barbas congeladas, os homens adormecem ao meio-dia da neve que cobre as ameias, as borboletas flutuam sobre pingentes de gelo, e os pássaros de plumagem brilhante equilibram-se no vento selvagem dos locais abandonados, as mariposas maravilham-se pelos campos frios entre flocos, mais altas ainda que os contrafortes, e os gansos selvagens voam baixo, com os gloriosos insectos e as orquídeas iridescentes. As águas gorgolejam quentes sob as nuvens negras e tudo dança num círculo de luz.
É simples o tilintar da folha, o canto alto do pássaro, é alto e é simples, e é fundo.
Na distância vertical o vapor sobe e esfuma-se e o braseiro alumia-se e acentua-se, assim era o que fugia das mãos e o amor que teimava e vencia.
Vê, se mesmo a treva, agora, não se tornou dócil, com o seu fruto incessante em correnteza, se a luz oriental não habitou o copo vazio, o cinzeiro apagado e a noite sem estrelas.
E sê baixo, para que tudo possas reconhecer recortado no mapa das estrelas. Deixa para a sabedoria o ser titã, alta e orgulhosa e na torre de silêncio és titã, alto e orgulhoso.
És uma brecha no mundo, para onde as águas das esferas caiem esquecidas. Faço soar os sinos do nosso casamento. Tu és o pássaro imortal, aurora após aurora, sobre montanhas. Os leões sobem para te cortejar e amam-te, porque devem morrer.
A Carbonização da Borboleta
Dormimos na neve como podíamos, para evitar passar a noite no bosque da aranha, e sonhámos com versos brancos com mais de cem linhas.
De manhã, trepavas horrendamente de abismo em abismo, sussurravas e a chama das velas cintilava.
Como uma silenciosa estrela no espaço é toda a palavra. O processo que no iniciado desperta a natureza angélica é o poético. Primeiro ele é sensível à terra, ao mar, à carne, à sua habitação, à cidade, ao deserto e ao campo; às montanhas e aos vales, às ilhas, às praias e às florestas. Depois tacteia o que emana das pessoas, dos elementos, dos poderes, dos anfíbios e dos mamíferos. Medita na mente dos cientistas, dos filósofos, dos químicos, abre o crânio ao céu e ultrapassa os obstáculos. A seguir deixa-se ficar só com o que há de imediato. Dá aos outros o que ele não tem mas que é destes, e os astros descem à terra, ao mar, à carne, à cidade e às florestas. Sabe que o espelho das coisas o oculta, e que o fogo o revela. Por meio de incendiar o espelho pode depois olhar a natureza e observar a sua profundidade em extensão, as inteligências que a governam. Então, vestido das ideias afirma automaticamente o espírito, e ainda que as suas ideias não sejam universais, o seu espírito será. Caminha como uma imperatriz sobre o corredor vermelho do pecado, adquire a experiência de um tigre, cobre-se dos elementos da terra e desaparece nela. De si ficará só a força e estará vestido de fogo, as paixões, encurraladas, irromperão pela sua carne, o seu espírito como uma águia bicando o seu corpo e o seu corpo estrangulando-lhe o espírito como uma serpente. Mas direcciona todos esses elementos para o seguinte enigma: "No espaço vazio, o que significa a Ousadia?", os seus instintos fazendo-o silencioso como o caçador; e sem nunca descobrir a terra prometida, retorna um monumento da mesma, como um homem que, durante tempo suficiente, se fitou ao espelho, apercebendo-se que a maior porção da sua aparência jaz entre as sobrancelhas.
André Consciência, de um apotamento escrito aos dezoito anos.
modelo: André Consciência; fotografa: Eunice Correia
Não me viste, na casa do príncipe Quando as paredes se pintaram com o verbo E não sabias que um dia o meu corpo Foi um cisne, compacto, invertebrado, e luminoso, A arrumar os cantos da penumbra, da hera e de arruda, As clareiras do vento, do coração e do poente Junto aos lírios e aos precipícios, erguendo-me ao cair do mundo Fendendo as árvores, baloiços por ancas.
A noite era quente, áspera com maresia, dela caia uma mão cheia de geada que ele via desaparecer no descampado. Segurava numa Lâmpada de cobre e pensava no amor, essa palavra a construir-se na abobada e a desconstruir as outras, as estrelas a escalar precipitadas sobre a cabeça das uvas dos dedos dela. A erva crescia-lhe nos pés e a aranha vermelha no peito cheio. Então, repetiam o mesmo nome, um nome que nunca se tinha escutado sobre o chão, a aranha subia a pétala de uma flor e todos os túneis seguiam para cima.
A palidez do rio tremulava nas minhas faces. Abri uma clareira de ar com a mão a azular-se e colhi uma dúzia de búzios. Uma ave fitava-me na margem, chamuscada pelo Sol, e eu cantei um piar louco, desajustado com a voz dos anjos. Não te via, Deus, há tanto tempo. Procura-me. Dizia. Aqui, do outro lado do rio é sempre igual. Mas, pelo menos, depois deste rio não hei-de ver nenhum homem, fisicamente capaz e ausente, a querer ser uma rocha que nunca soube parar. Mesmo nas proximidades do lago e na região sulina do mar, os mestiços caminham de cabeça baixa, a cultura pesando-lhes sobre o pescoço. Uma vez, esperei durante oitenta e três anos num jardim do Golfo Pérsico, outra na costa oriental do Mediterrâneo, numa estreita península que se projectava para Oeste, quase uma ilha. A ave também lá estava, rubra, azul, a portar a glória da manhã mesmo na noite, mas só eu cantei. Raramente chovia, ainda que a precipitação não poupasse os planaltos circundantes e quedasse copiosamente. Havia uma árvore como as árvores em Casa, alimentada pelo rio que atravessa a Mesopotâmia, coberta de metais e pedras preciosas. Sentei-me e esperei por muito tempo, ganhei ramos, raízes, cascalho, e pus-me a brilhar, eu e a árvore, a ignorância, a selvajaria e a treva a rugir à nossa volta. Começou-se a levar ali pastoreio, aves e espécies domesticadas. E um casal, vindo de mundos distantes e centrais, alimentou-se dos meus cabelos, a sua existência animal não envelhecendo nem um dia. Quando acordei, a árvore ardia, o fundo do mar mediterrâneo a leste, que unia África a Sicília, afundava, e apenas as trevas exteriores haviam chegado. Aqui e agora, do outro lado deste rio, existe a voz seráfica de outro jardim. O concerto nunca acabou, e sinto que só eu canto...
II
Certa vez vi o Casal Celeste descer sobre um templo ao Pai Abandonado e dez dias depois, tornar-se homem e mulher. Recuperaram a consciência simultâneamente, de todos os tempos, de todos os lugares, mas vividos em par. Ergueram-se trôpegos, com três metros de altura, a pairar sobre Jerusalém, e os conflitos do mundo baixaram-se rasteiros, com um gemido longo, e calaram-se, perdendo a consciência, a personalidade, principiando a rir-se como crianças no convívio da família. O Casal também me viu, um peregrino ao meio-dia, e falando-me, a ave cantou na minha língua. Debaixo da Lua sentámo-nos, eu e a ave, a fazer planos para o dia seguinte. De manhã, erguemo-nos sobre os vastos jardins do mundo a beber o leite das nozes e o suco das frutas. Depois do meio-dia, punha-me a absorver a luz de certas regiões do universo. Então vimo-los subir os montes, prostrarem-se, a verter leite, um e o outro, dos seios. Sob o Sol, os seus corpos nus emitiam uma luz difusa, mas de noite a Lua vestiu-os e só as suas cabeças irradiavam, num uivo que alastrava a uma distância insondável.
Malak XXII
Tinha cruzado a fronteira que intersectava o meridiano e atravessado a estrada de quilómetro e meio para Sul e segui para Este, embrenhando-me nos vales, e transpus a garganta para Sul, embrenhando-me nas planícies, atravessei os montes e fui até às montanhas. Tinha no peito uma ferida já cintilante, no ponto em que Deus me mordera dois anos antes, algures nas montanhas sonoras.
Deambulei depois disso pelo Oriente durante um ano, Comia camelos e cavalos selvagens e marcava as árvores com a minha mão. Depois de tanto tempo a ignorância dos homens ainda era para mim um enigma, com os pés em tumulto, a deambular, a urrar e a debaterem-se através da vida, arrastando tudo no seu caminho até morrerem. Os homens evocavam em mim uma qualquer raiva de fera, uma fome, como se violassem uma velha ordem. Imprimia estes princípios: nunca regressar para junto de um vivo uma segunda vez, nunca atravessar a mesma estrada nem a mesma linha férrea. Nunca louvar o Sol duas vezes no mesmo local da terra, embora ele sempre no meio-dia do céu.
À noite, descia até às planícies e perseguia os macaco-leão, a vê-los rodopiar e fluir na sua própria massa, a poeira levantava-se como um fumo e eu recordava-me do Leite do Pai a descer. Os seus membros erguiam-se, as suas cabeças, e principiavam numa histeria que fazia o mundo passar pela sua passagem lentamente. Procurava qualquer indício entre eles que me indicasse quais marcar. Mas consumia as crias deixadas para trás, vindas de outro mundo, cegas e moribundas, translúcidas porque amanhecia. Alguma coisa tinha de rasgar o silêncio terrível.
Malak XXIII
No rio e nos rápidos pouco fundos e nas línguas de cascalho, não encontro o teu nome. Um bando de patos escuta-me a bater as minhas asas, distingo-os em lampejos ao erguerem-se contra o céu. A água forma remoinhos vagarosos e negros que luzem na margem do rio, e para além dos salgueiros-anões eu não encontro o teu nome. Se te chamar na paisagem escura, o meu lamento não terá outra origem que não a noite em si.
Malak XXIV
Havia dias que levantava as terras. Ateava piras nas montanhas desabrigadas e de noite, por vezes, afastava-me através dos prados e deitava-me no chão, no silêncio do mundo, e remirava a chama do firmamento por cima de mim. Nessas noites, pensava muitas vezes em Deus, imaginava-o sentado junto a um silêncio igualzinho àquele, numa paisagem em tudo igual àquela. Então, eu descansava, o halo sobre a minha cabeça a ocultar-se no Sol matinal, o Pai a converter-se num outro ser, desprovido de história, desprovido de futuro.
As folhas caem lá fora e a beleza levanta-se. Tudo se ergue no ar, na luz do Sol. Eu fecho os olhos e penso em ti, sejas tu quem fores, de olhos abertos e eu de olhos abertos, fendidos no incêndio da escuta. E quando eu morrer, enterra-me no musgo, que as minhas palavras ganhem silêncio e falem. E o ruído constante do escombro colossal que é o mundo há-de-se chegar para o lado. Um abraço há-de vencer as distâncias, e um pardal pousará na margem plúmbea do rio, se amanhecer, as penas rubras e azuis, como brasas retiradas da fogueira e que, por uma vez, não se apagam. Talvez eu acorde, talvez esteja Sol sob os teus ornamentos exóticos e eu ouça os riachos das fontes a correr e pense que o céu é uma boca sem chão e a vida um balão alaranjado sobre os Olivais Primeiros.
189 - Valentino, gnóstico do sec. II, afirmava que Cristo comia, bebia, mas não defecava.
190 - João Erigena, teólogo do sec. IX, dizia que Adão podia levantar o membro como levantamos um braço.
191 - O desacordo com a merda é metafísico, a merda não é imoral, mas põe em causa o criador.
192 - Como foi dito, o Kitsch é um biombo atrás do qual se esconde a morte.
193 - Os movimentos políticos repousam não sobre o racional, sim sobre imagens, representações, arquétipos, vocabulário, que no conjunto constituem o Kitsch político.
194 - Em vez de "viva o comunismo", diz-se: "viva a vida".
195 - Nos tempos modernos, não é uma questão de acção ou de não acção, mas de dar espectáculo ou nada fazer.
196 - A intervenção assemelha-se a um grupo de teatro combatendo um exército.
Clap clap clap clap clap clap clap clap, assim. Três batiam palmas, um saltava para o meio, os transeuntes na escadaria a ver. Há alturas da vida em que ficamos novamente jovens, ou fingimos bem o suficiente para nos enganarmos. Mas de noite, chegava-me uma angústia, quando era para dormir. angústia. Levantava-me da cama, deixava-a a descansar e ia sozinho perder-me até começarem a assobiar nas ruas os que levam o lixo, os que abastecem os bares. Todos assobiavam. E depois as freiras a brilharem ao sol, os cavalos a começarem a preparar-se para o dia. Dirigia-me para o terraço do hotel. Ficava a comer, beber, fumar, à espera. Ela pegava em mim e levava-me para um jardim onde dormíamos ao calor.
Caminho entre os homens, fico a conhecer-me neles. Ainda muito só, a graça divina a influenciar por onde piso com a minha imagem. O Mediterrâneo a meus pés, judeus, muçulmanos e homens de Cristo que me respondem mais a mim que ao mar, e eu sem pergunta alguma, de mais perguntas o mar. Sou carne e osso, o meu sangue não é o seu e por isso imaginam o supersensível, a habilidade metafísica. A sua razão a ganhar os meus sentidos, esmagam-se contra mim a chamar-lhe cidade. E só me compreendendo, libertando-se da sua experiente sombra, se poderiam conhecer.
Um dia largaram-me no Poço, onde fiquei muito tempo, a sentir as esferas que giram, a imutabilidade que as subordina e onde resido. Agora os homens despreocupados, a razão a fungar trémula nos focinhos húmidos, a verdade encarcerada.
Eu, que aqui fiquei, estive também em muitos lugares, mas visitou-me neste Agostinho, o cepticismo intacto, Boécio consolou-me e o tempo passou. Chegou um dia Chaucer, já esquecido de mim e a falar-me de honra e cavaleiros. Chegou Spenser que me deixou para companhia a rainha feérica. Ri-me de Dante, este sem prescrição para a incerteza, tão certo e galante. E perguntando-me da minha natureza, onde estava dependente a verdade última, lhe não soube responder, ou as leis por que opero, e nem o que é eterno ou transitivo. Dobrei-o, como a uma coisa sublunar, e condenou-me ao nome de Ilusão.
Aquando do Concílio de Niceia saí de dentro da terra e vivi a vida dos vivos, sendo pai para Al-Farabi, irmão para Avicena, amigo de Averróis e colega a Moisés Mamónides. Em Paris e Pádua ajudei a fundar universidades, caminhei com Tomás de Aquino, que fiz matar um homem na neve depois lhe pedindo a matasse, e a todos estes verguei, ao que permaneciam.
Malak IXI
No ano de 1300 reuni para mim uma alcateia de lobos brancos, cinzentos e cor de noite. Os outros diziam que transformava o cão no lobo e o lobo no cão, que do lobo fazia loba e da loba juntava o lobo. Talvez guiado por isto, um homem de nome Ockham veio depois comigo ficar nos terrenos nevosos, e lhe pedi que pusesse termo à vida do manto branco, como o fizera um dia a Aquino. “Se podes matar a neve, então também eu posso morrer”, acrescentei.
Na manhã seguinte ataquei-o vindo de todos os ângulos do Sol, cego pelo brilho William nunca previa a minha aproximação. Respirava agora exausto e eu soprava-lhe palavras.“Disse-te um homem uma alegoria de sombra e caverna, mas é o Sol que te cega, e o Sol é a razão a si mesma voltada. Se fitas o solo, vês-me na sombra, e é na sombra que o Sol te mostra a exactidão.” Quando se levantou, disse-me “não há neve”- existiamos então nós e aquilo que havia sido neve se tornara Legião. Aproximei-me do apático homem, o beijando na testa, a seus pés me prostrando e abandonando-lhe a minha espada.
“A seguir, terás ainda que me ter morto, e despirás o espaço e o tempo de absoluto, não multiplicarás as entidades dai resultantes para além da necessidade. Eu e tu seremos livres.”
Mas o homem nada fez ainda que me ferisse, pois na base da sua mente velejava também um anjo, a existência limitando-o.
Malak XX
Caia o porto de Antuérpia e os monastérios mudavam de propósito. De um dia para o outro, Londres enchia o ar de gente. Shakespeare fundou o Globe Theatre, onde os outros iam para se rir, e depois surgia a conspiração da pólvora. Na Honourable Society of Gray's Inn conheci Bacon, mas foi muito mais tarde, que no frondoso Hyde Park me fiz visto nu para na carne um do outro nos assexuarmos. Nesse dia, sentiu-se pela primeira vez criança comigo, perguntou-me como se passavam as coisas no reino de origem. “Só há” disse-lhe “uma que tens a saber do Céu, se existe. E é essa coisa esta, que enquanto vos ocupas de classificar as acima e abaixo das nuvens, e o seu destino de acordo com a sua presente utilidade, os celestiais se admiram com que coisas geram outras coisas, observam, estudam e reproduzem o modo como isto é, assim progredindo além do que se conhece tal como está, e movimentando os astros.”
Ninguém me veja. Sugo o mel das colmeias, os raios do Sol, roubo os primeiros risos dos bebés e cubro-me a mim com um manto se adormeço. No Samein as raparigas chegam com risinhos e faces rosadas, coroas de louro, bolos e leite fresco. Abraçam-me acaloradas, lançam-me elogios sem sentido, oferecem-me laranjas e partem. A caminho, as bocas das borboletas terão os seus filhos, as mulheres chegarão a casa chorosas e de joelhos sujos, devorarão um bago de amoras e deixarão ao cacimbo da alvorada a porta aberta para mim.
Ela:
Uma estrela caiu e deixou a noite sem Lua, um beijo lançou-se na chuva. A voz de Lorca morreu numa esquina e no largo ouvia-se a poesia sensual das línguas romanas. Alguém bebeu e conversa vestido de andrógino sobre o significado da vida, sobre a Escandinávia e os seus castelos, na vila abandonada. Ela tem meias rendilhadas acima do joelho e fuma antes de entrar no casebre, repleta de romantismo alemão, de agressividade passiva, de perfeccionismo e sarcasmo afectuoso. Chopin nos fones, Salvador Dali no Tablet, uma ficção de distopia no bolso e um desejo de voltar a sangrar da virgindade.
De corpo pequeno e coração virgem, a menina com um sapo na boca abria timidamente os olhos selvagens e corria como um coelho, a cidade inteira não a via, e ela banhava-se no seu caos, dobrando-o, a beleza maior quanto menor o seu propósito. Aprisionara um leão dentro do crânio, um pardal no sexo, passava levemente e era poeta.
Sonhei que caminhava sobre vidro no nosso espaço xamânico. Chegado a uma árvore alta, escrevi com um caco o teu nome no cascalho. Passei a mão pelo cabelo e murmurei-te: os teus lábios eram suaves e o Sol pingava ouro, o anoitecer lânguido com uma centena de pirilampos. A vela intermitente iluminava alguns títulos de livros e o cheiro do musgo chamou a chuva, a chuva chamou as flores, tudo era urze.
F. Scott Fitzegarld
Há uma relação directa entre a morte e a luz maior: no cemitério o fogo queima até a pedra e as estátuas deterioram-se, ou, se nos apaixonamos, a mordedura das borboletas degrada a lucidez, os olhos negros ganham um tom azulado e a pele empalidece. Quando se beijam, os amantes abrem os lábios, a vida escapa-se e a neve cai vermelha de alturas insondáveis, às quatro da manhã ainda estaremos a dançar de pijama e as estrelas a gritar com vertigem.
O dia a seguir nascerá bonito, e como todos os dias nascidos do bem convocará a tempestade, a manifestação das potências, a chuva de pó nas páginas amarelecidas da poesia, o cigarro sobre o álcool, as pisaduras nos braços que se estendem para a escuridão dos quartos sem saída, os Outonos nebulosos ou o gelo que faz brilhar as estrelas.
Franz Kafka
A esperança é chama baça. Visto um saco de plástico sobre a cabeça, e vou pelas ruas da nostalgia, a sorver a chuva com a língua, com os ossos rachados, com os fantasmas que aprisiono nos pulmões, as veias dos pulsos, o cheiro dos livros. E sou um soldado, de saco de plástico como elmo, a esperança a força gravítica que arrasta a luz a um buraco negro. Sento-me, a ouvir crianças, contam estórias dos mortos, o futuro é um calabouço.
H. P. Lovecraft
A certa altura da noite a morte estremece e morre. Por um momento não respira, antes de retomar o seu passo lento, e nesse momento o céu é de uma luminusidade estranha. Nada se explica, e essa luminusidade explica que assim seja. Camile Saint-Saens numa casa vazia, a olhar o céu numa varanda que se pisa sem testemunha, o silêncio a sobrepor-se ao gira-discos mesmo assim. Daqui posso ver o Oceano, a escuridão no seu seio onde tremem as almas dos meninos.
Jack Kerouac
É impossível estar-se vivo sem paixão, mesmo o suicida, no último segundo ama ainda a vida. Da mesma forma, é impossível ser-se terra sem extensão ao infinito, ser-se gente sem tontura, haver universo sem enigma e descoberta. É impossível o ideal que seja possível, possível é o vento que alastra nos cabelos e a neblina no crânio, a incerteza sobre os ombros onde existem as asas, passar-se pelas brasas ao Sol, guiar de noite com risadas e café, gritar contra o filho da puta do deserto um grito de vida, o esquecimento.
Edgar Allan Poe
O eu começa na intimidade de um segredo. Dizemo-lo e o crepúsculo apressa-se mais como se impelido por uma chuva súbita, o sangue seca e o licor derrama-se. E nenhuma flor na campa é um segredo até que murche. Olha, eu mordo um limão, o olhar enche-se de vidro e roço nos teus os meus lábios, a morte a pesar-me o coração, a perfeição no teu fim. A chama só é chama se auto-inflngida, a sabedoria só é nos olhos das aves negras quando calam o seu canto, e Deus quando há pó: menos nas estrelas que desmancham a pedra tumular, menos nos corações que sentem o calor das mãos fora do corpo, menos no espaço oco que há dentro dos ossos, ou no nevoeiro que é o horizonte.
Na torre, os sonhos vão arder. Mulheres sentavam-se pétreas à porta do Inferno, os cabelos rapados, as roupas em uníssono, miradas pelos homens como se fossem nem mulheres nem homens mas juízes, os olhos a tomarem uma tonalidade sozinha, nuvens em cinza a invadir a tez vermelha dos lagos.
Dizem que o medo não magoa mais do que um sonho, como a felicidade não chega sem ser convidada. Depois, há os que acreditam que um abraço pode mudar um dia, uma semana, um mês na vida de alguém. Nada disto eu sei, e não parece que importe. Procuro continuamente a minha última esperança, os rostos da minha última luz cada vez que me despeço, e nunca mais me esqueço. De resto, fico acordado à noite, de noite pode dizer-se e ouvir-se qualquer coisa sem que se estranhe.
I
Quando se caminha sozinho na cidade é-se superior a todos os outros, a melancolia absorve os vestígios do desespero e desacredita a dúvida. O Sol não se espreita na fresta dos prédios, mas aquece nos vales cinzentos e dentro das janelas, quando a noite chegar deixando do dia só as brasas, os moradores não adormecem, tornam-se chamas pequenas a arder nos lençóis. E se, a caminhar sozinhos na cidade, vemos o absoluto, ele canta uma negação.
Numa destas noites como as que descrevo, Lisboa encheu-se de pequenas velas nos parapeitos, seguiram-se oito minutos e uma criança parecida a um apagador subiu ao terraço, contou estrelas e árvores, a imaginar. Deixou-se cair.
II
As suas palavras calavam-no quando o beijavam. Mudo, vestia-se dos milheirais, esquecia-se do que sabia e atava tranças como quem aprende uma canção. Uma menina estava vestida de vermelho, usava rosas na cabeça, depois estava nua, um tornozelo na anca do rapaz, outro no ombro, ele uma espada em brasa. Um dia, a menina era menina e colhia frutos na falésia, o mundo ainda não existia. E possam amar-se, quando, se houver silêncio, adormecerem.
III
Somos estrelas. Caímos e olhamos para cima, para ver as estrelas. Sonhamos e com esse esforço suamos, um ranho a sair dos poros e dos sapatos escaldados, então pensamos: "só o melhor" e rimo-nos de tudo o que não são as estrelas, telefonamos aos nossos pares e separamo-nos. Engordamos, enriquecemos, tropeçamos no amor e sobrevivemos e os que voam morrem. Eu colocarei uma gola de renda ao teu pescoço, branca e frágil, e te agite nua, os teus seios uma alforreca que pulsa, eu trémulo e a largar maçãs. Todos somos fósforos no festival do fogo, e tu seguras um balão de hélio com os pés nus, as ancas levantadas, a profundidade morta.
IV
Alguém te deu memórias e se tornou memória. A beleza consome o pôr-do-Sol como consome os indivíduos, inflama o espírito e o espírito apaga-se, torna-se nas coisas mas já nenhuma coisa existe. Existem olhos nas máquinas fotográficas, olhos tão imóveis e fixos como o que somos quando ninguém vê, e a tua arte afoga-se nos miradouros, ele ganhava asas, não seria bonito ama-lo e seria amado, a sua casa seria um mundo, construída numa ilha sob uma ponte frágil e pisada com temor, a sua alma queimaria o teu corpo que envelhece. Nenhum anjo te pariu e não herdarás o mundo. Um dia talvez alguém te veja e as minhas mãos segurem dois círios.
V
Semicerrava os olhos e as luzes vestiam uma torrente de fantasmas à procura de casa. Então permanecia estóico, uma candeia na noite dos mortos, coleccionava as mãos das estrelas para salvar as estradas. Amarrava a escuridão numa parede branca, aguardava pelo tempo húmido, endurecia e penetrava-a, para que pudesse amar pelo menos o que havia de mais brilhante nos outros. Desabitava-se, e esperava que algum fantasma entrasse para um tinto e assombrasse a habitação com bruxaria nos lábios, mesmo que não ficasse muito tempo, porque as garras lupinas marcadas no chão atrás do caminho não deixam esquecer o tempo, e eu como sempre as flores ao primeiro sinal que murcham. Ao pico da noite descia às praias, não olhava a Lua, punha-se a pensar que lhe conhecia o rosto e todos os outros o cu. Descia às praias, esperava pela maré enchente e punha-se a arder alto, a desafiar as vagas, as palavras a afundarem-se e o crânio em lâmpada. Sim, atirava o coração às gaivotas e as estrelas caiam sobre a estrada. Depois a morte descalçava-se, descia o alcatrão incandescente aos risinhos, oferecia-lhe limões e chovia. Os dois sentavam-se, os vivos começavam a ouvir-se, com as suas lutas, as suas canções.
VI
Por vezes a nossa alma abre as pálpebras azuis e encontramos o lugar que os seus olhos habitam. De vez em quando pensamos no futuro, mas o futuro não vai por ali, entretém-se a escapar ao presente. De qualquer modo o Sol fica a brilhar, não é bonito, arde. Quando se põe restam as estrelas, calamos um choro, bebemos vinho, beijam-se as línguas e dançamos debaixo da Lua. Ou talvez olhemos durante muito tempo para um ecrã. Se calhar as mulheres sentam-se a escrever sobre relações. Eu levanto-me com os ossos debaixo do peso das vidas, a casa incendiada para dar melhor lugar à vista, o ouro cai e não é de dia nem de noite, os ossos caem a estalar sob os meus pés, os campos choram e eu colho as desesperadas violetas dos meus pulsos.
VII
Todos os dias, em algum lugar, espero que o céu me alcance, que o seu humor se torne como o meu ao longo do Sol. Por vezes a rádio passa aquela música que diz que alguém esteve comigo, mesmo nunca tendo sido. Afio a memória como se afia uma espada, e quando todos os seus ângulos são de cristal saio do carro de novo menino, colho laranjas, deixo a morte entrar: a erva, o amor, o fogo que ruge no Inverno, de novo a cor do céu.
VIII
Chegará o Outono. O Verão terá morrido bem, antes do tempo. Os adolescentes vão juntar-se no conforto de casa com uma bebida e a ver filmes de terror, a pensar que conhecem filmes de terror. As mulheres vão acender mais velas. Eu talvez arda uma fogueira, mergulhado num mar de folhas. Já não interessa o outro mar, a terra terá engolido o outro fogo e as fadas populado jardins secretos. No banco que abandonei, a tua mão terá caído sobre o meu colo. Num livro, estarei a beijar. E talvez chegue ao Inverno, talvez me livre do presente, com todo o passado, e me encontre exacto como a grande antiguidade.
IX
Quando viajamos, no momento em que encontramos despedimo-nos, por isso nos lembramos com nitidez das viagens. Mas ele apercebeu-se desde cedo. Rodeamo-nos de plantações, colhemos o que semeamos. E se desviamos os olhos dos milheirais, por um só segundo, sabemos que somos nós a colheita. Um raio percorre-nos o corpo, e nós somos o raio. Os outros agarram-se no escuro, à procura de calor, cegos para as ossadas. A ele, lhe fora dada calma, sorria para os homens, cuidava dos escorpiões e emudecia as mulheres.
X
As ruas vazias, o vento gelado a percorrer a cidade, a mulher com a lingerie número vinte e quatro num alpendre de madeira, a flor amarela no umbigo. Estou cansado das vozes no vento, dos objectos que populam as ruas. Há asas em mim e o mundo nas têmporas. Um génio consome-me o corpo. Se pudesse manter uma única memória lembrar-me-ia do Sol, o dossel de penas rasgaria o ar.
Prólogo
Um dia seremos duas pessoas que se conhecem novamente pela primeira vez. Acabaremos por subir à nudez dos sítios altos, voltaremos a pensar que temos mais dias do que restam, mas há sempre o silêncio, as janelas por dentro da cidade, o tempo que parece que mata e apenas morre. Não sei que dia é. Acendo um cigarro.
O som subtil dos lábios que se separam num sorriso espontâneo cola-se ao ruído descontrolado da cidade de Lisboa, e um homem que colecciona os lugares colecciona as vidas. Lembro-me por exemplo dos teus pés frágeis, brancos na curvatura, a pisar as folhas do mato sobranceiro ao rio, a antiguidade muda da terra entre os dedos, a claridade de um fim de tarde que furava as copas a reluzir nos teus calcanhares, com todas as folhas, com a sonoridade móvel de todos os ramos. Dizem que na morte se torna tudo, e que se sabe talvez todas as coisas, mas é isto que é a morte, uma fotografia que está viva. E um dia voltamos aos lugares, estamos sozinhos a caminhar dentro do que também está dentro dos nossos, num anel de fogo somos os lugares e estamos a presenciar-nos, transparentes, quebrados, o Sol a atravessar as fissuras, a corrente das almas a resplandecer.
Os livros, os mares, os rios e os lugares, os pensamentos, o vento das horas que sopra no corpo dos dias, as manhãs e os sábados com palavras, a certeza nos lábios e o desejo nos beijos: tudo isto é a solidão da minha ilha, o fogo nas minhas mãos com as noites, os quartos, os barcos soprados pelas cidades, o choro dos saxofones nas ruas, o silêncio que espera a solidão de uma ilha e a arara nas minhas mãos.
Na escuridão, não distingo os teus movimentos ondulantes, mas sinto o prazer causado. À minha direita, numa laje enorme, vejo que foi esculpida a tua magnífica cabeça, a cabeça de uma ave, rodeada de chamas. O teu interior é vagamente iluminado por archotes e as paredes estão cobertas de mascaras e outros objectos esculpidos em madeira. Tiro da parede uma máscara que simboliza o Sol, como se me estivesse a rasgar ao meio. A luz é escassa e só forçando a vista distingo os teus contornos a mover-se de um lado para o outro. Enquanto isso, das profundezas da gruta chegam-me aos ouvidos os teus terríveis uivos de mulher. O gemido tenebroso torna-se num grito lancinante mas eu prossigo, e no cume da montanha de fogo, para leste, vejo o amanhecer, as folhas vermelhas exalam o teu agradável cheiro adocicado. A noite chega para nos tirar as formas e o tempo e depois a aurora, apaziguada, abandona o seu esconderijo, um pássaro de bela plumagem a passar por dentro de um arco em chamas.
II
O vento começa a soprar com força, atirando-me pedaços de neve para a cara. Viro a cabeça para baixo e luto contra o vento. De súbito, por detrás da cortina de neve, surge a tua elegante sombra branca. A subida íngreme e a neve que não pára de rodopiar à minha volta impedem-me de andar depressa. Uma das minhas mãos está queimada do frio. Há uma rocha suspensa e a nossa pequena cabana que está encostada à escarpa com o telhado coberto de neve, as janelas pendendo longas estalactites de gelo. Reparo nas tuas pegadas pequenas e leves que partem dali e sobem a montanha.
A porta da cabana não se pode abrir por causa do gelo e empurro-a com o ombro. Lá dentro, na única divisão que existe, encontro a tua pele. A cama de madeira, uma cadeira e os utensílios de cozinha tantas vezes usados.
Agora o nevão de Verão cessou, o céu mostra-se azul e luminoso. A brisa é fria e agreste e a neve desfaz-se debaixo dos meus pés. Encaminho-me lentamente para a encosta até que encontro uma escarpa demasiado alcantilada para escalar. Resolvo circunda-la e deparo-me com uma autentica parede de gelo. O coração começa-me a bater descompassado ao avistar um bocado do teu vulto. Mais adiante, noto uma abertura na parede do lado esquerdo. Dirijo-me para ai e espreito. Vejo um homem muito velho a esfolar um alce. Ouço vozes a cantar ao longe e a tua gargalhada jovem ecoa pela câmara.
III
Lembro-me do Verão. A neve espessa cobria-te e um vento glacial saia dos teus ossos. Eu e tu gostávamos de seguir atrás das carroças, sem destino. Ás vezes roubávamos os tecidos, eu vestia-te deles e imaginava que me pintava com as tuas cores. Depois, bebíamos chás e trocávamos os tecidos por peles, peças de marfim e presas de mamute. A certa altura atravessámos um lago gelado e, ao longe, avistámos os picos cobertos de neve das montanhas. É Verão, e o Verão parece emergir das nuvens baixas. Neva continuamente, embora com pouca intensidade. Paro, fazemos amor. De súbito, o som de uma trompa de caça rompe o silêncio. Os teus olhos, de um azul-vivo, perscrutam o horizonte em busca de sinais de vida. A neve está tinta de sangue. Alcanço-te uma hora depois, com a noite já a cair, e descrevo-te o que encontrei. Fazemos um circulo, para melhor nos protegermos durante a noite, e no centro é ateada uma fogueira enorme. Sento-me perto dela, à conversa contigo. Reina uma atmosfera de nervosismo, mantenho-me atento a quaisquer movimentos do exterior. O nevão cessa finalmente quando nos preparamos para dormir, mas o sono demora a chegar. Quando acordo ao nascer do Sol, a fogueira não é mais que um monte de cinzas por onde sai um fumo que se mistura com a neblina da manhã. Não se ouve um som. A neve recomeça.
IV
Quando as imagens se fixam novamente, ganhas vida, batendo as tuas asas enormes. Da cabeça aos pés começas a cantar uma canção de embalar e os insectos ficam sonolentos, caem no chão. Reparo que o teu corpo se movimenta ao ritmo da canção. A fonte está livre.
V
Com um grito de dor cortas a tua própria perna. Tudo muda constantemente. De forma. De posição. Através de descampados sem fim talvez um dia encontre a jovem que segui. Mesmo que haja um frio anormal no ar, um nevoeiro sobre os caminhos de terra batida. E pelo caminho hei-de mergulhar a cabeça no rio coberto de neblinas, a minha pele ficará verde, coberta de escamas, sem mais medo da ave de fogo. E talvez ainda te veja delineada contra o horizonte, com o pulso feminino a esconderes-te atrás das árvores, a morte a cantar e a voar nas tuas mãos como se fosses o segredo da harmonia, mas o meu coração permanecerá nobre como o do lagarto, sem juízos, só com os demónios das planícies, uma centopeia gigante de barriga mergulhada nas águas brancas que uma massa de escuridão informe não consegue engolir. Então vou celebrar-te, a morte cantará com luz e destruirá completamente, contornarei o poço para te enfrentar. Os teus olhos rolarão para cima, deixando-te completamente cega. Seguirás às apalpadelas no meu vulto e eu serei a porta do casebre.
VI
Dirijo-me apressadamente para a saída da aldeia e fico a ver as portas de ferro e carvalho. Não tenho como me defender. Não tenho como me defender dos olhos brilhantes como pérolas que emergem do lamaçal, mas as árvores distorcidas e as plantas crescem, eu também.
Fora, atravesso os pátios dos palácios com um andar autoritário, as aves-peixe fazem-me continência, os planaltos arborizados alternam com vales belos e calmos, aninhando-se quase invisíveis entre penhascos escarpados, desgastados pelos rios. Ao anoitecer, viro-me para o espelho e pergunto o nome daquele lugar. O meu coração deixou de bater. Busco um local seco para descansar.
És tu? Como ninguém responde, sei que és tu. E de resto, ouve-se o som baixinho e típico de pés a correr. O meu rosto é uma mascara de fúria e dor, com os olhos a arderem devido ao que é libertado pelo deserto.
Da tua flor a tintura da vida, da tua canção a sombra fresca na terra. Morre a águia e morre o tigre, e cobrirás a pincelagem primeira, da amizade, da nobreza, do amor fraterno, com a sombra negra da terra.
Uma larga plumagem é o teu coração, e de puro jade é a tua palavra, ó Pai!
Tende piedade de mim e sobre mim pousai um olhar misericordioso, porque será por um momento breve, como, em oferta à Mãe Morte, abrem os frutos azuis os corais de flor e canção.
Blood Gatherer
We shall not for ever die; even the grains of corn we put under the earth grow up and become living things.