terça-feira, 7 de julho de 2015

O vento cantou para o anjo






I


Na escuridão, não distingo os teus movimentos ondulantes, mas sinto o prazer causado. À minha direita, numa laje enorme, vejo que foi esculpida a tua magnífica cabeça, a cabeça de uma ave, rodeada de chamas. O teu interior é vagamente iluminado por archotes e as paredes estão cobertas de mascaras e outros objectos esculpidos em madeira. Tiro da parede uma máscara que simboliza o Sol, como se me estivesse a rasgar ao meio. A luz é escassa e só forçando a vista distingo os teus contornos a mover-se de um lado para o outro. Enquanto isso, das profundezas da gruta chegam-me aos ouvidos os teus terríveis uivos de mulher. O gemido tenebroso torna-se num grito lancinante mas eu prossigo, e no cume da montanha de fogo, para leste, vejo o amanhecer, as folhas vermelhas exalam o teu agradável cheiro adocicado. A noite chega para nos tirar as formas e o tempo e depois a aurora, apaziguada, abandona o seu esconderijo, um pássaro de bela plumagem a passar por dentro de um arco em chamas.






II

O vento começa a soprar com força, atirando-me pedaços de neve para a cara. Viro a cabeça para baixo e luto contra o vento. De súbito, por detrás da cortina de neve, surge a tua elegante sombra branca. A subida íngreme e a neve que não pára de rodopiar à minha volta impedem-me de andar depressa. Uma das minhas mãos está queimada do frio. Há uma rocha suspensa e a nossa pequena cabana que está encostada à escarpa com o telhado coberto de neve, as janelas pendendo longas estalactites de gelo. Reparo nas tuas pegadas pequenas e leves que partem dali e sobem a montanha. 

A porta da cabana não se pode abrir por causa do gelo e empurro-a com o ombro. Lá dentro, na única divisão que existe, encontro a tua pele. A cama de madeira, uma cadeira e os utensílios de cozinha tantas vezes usados.

Agora o nevão de Verão cessou, o céu mostra-se azul e luminoso. A brisa é fria e agreste e a neve desfaz-se debaixo dos meus pés. Encaminho-me lentamente para a encosta até que encontro uma escarpa demasiado alcantilada para escalar. Resolvo circunda-la e deparo-me com uma autentica parede de gelo. O coração começa-me a bater descompassado ao avistar um bocado do teu vulto. Mais adiante, noto uma abertura na parede do lado esquerdo. Dirijo-me para ai e espreito. Vejo um homem muito velho a esfolar um alce. Ouço vozes a cantar ao longe e a tua gargalhada jovem ecoa pela câmara.

III

Lembro-me do Verão. A neve espessa cobria-te e um vento glacial saia dos teus ossos. Eu e tu gostávamos de seguir atrás das carroças, sem destino. Ás vezes roubávamos os tecidos, eu vestia-te deles e imaginava que me pintava com as tuas cores. Depois, bebíamos chás e trocávamos os tecidos por peles, peças de marfim e presas de mamute. A certa altura atravessámos um lago gelado e, ao longe, avistámos os picos cobertos de neve das montanhas. É Verão, e o Verão parece emergir das nuvens baixas. Neva continuamente, embora com pouca intensidade. Paro, fazemos amor. De súbito, o som de uma trompa de caça rompe o silêncio. Os teus olhos, de um azul-vivo, perscrutam o horizonte em busca de sinais de vida. A neve está tinta de sangue. Alcanço-te uma hora depois, com a noite já a cair, e descrevo-te o que encontrei. Fazemos um circulo, para melhor nos protegermos durante a noite, e no centro é ateada uma fogueira enorme. Sento-me perto dela, à conversa contigo. Reina uma atmosfera de nervosismo, mantenho-me atento a quaisquer movimentos do exterior. O nevão cessa finalmente quando nos preparamos para dormir, mas o sono demora a chegar. Quando acordo ao nascer do Sol, a fogueira não é mais que um monte de cinzas por onde sai um fumo que se mistura com a neblina da manhã. Não se ouve um som. A neve recomeça.


IV

Quando as imagens se fixam novamente, ganhas vida, batendo as tuas asas enormes. Da cabeça aos pés começas a cantar uma canção de embalar e os insectos ficam sonolentos, caem no chão. Reparo que o teu corpo se movimenta ao ritmo da canção. A fonte está livre.


V

Com um grito de dor cortas a tua própria perna. Tudo muda constantemente. De forma. De posição. Através de descampados sem fim talvez um dia encontre a jovem que segui. Mesmo que haja um frio anormal no ar, um nevoeiro sobre os caminhos de terra batida. E pelo caminho hei-de mergulhar a cabeça no rio coberto de neblinas, a minha pele ficará verde, coberta de escamas, sem mais medo da ave de fogo. E talvez ainda te veja delineada contra o horizonte, com o pulso feminino a esconderes-te atrás das árvores, a morte a cantar e a voar nas tuas mãos como se fosses o segredo da harmonia, mas o meu coração permanecerá nobre como o do lagarto, sem juízos, só com os demónios das planícies, uma centopeia gigante de barriga mergulhada nas águas brancas que uma massa de escuridão informe não consegue engolir. Então vou celebrar-te, a morte cantará com luz e destruirá completamente, contornarei o poço para te enfrentar. Os teus olhos rolarão para cima, deixando-te completamente cega. Seguirás às apalpadelas no meu vulto e eu serei a porta do casebre.


VI

Dirijo-me apressadamente para a saída da aldeia e fico a ver as portas de ferro e carvalho. Não tenho como me defender. Não tenho como me defender dos olhos brilhantes como pérolas que emergem do lamaçal, mas as árvores distorcidas e as plantas crescem, eu também.

Fora, atravesso os pátios dos palácios com um andar autoritário, as aves-peixe fazem-me continência, os planaltos arborizados alternam com vales belos e calmos, aninhando-se quase invisíveis entre penhascos escarpados, desgastados pelos rios. Ao anoitecer, viro-me para o espelho e pergunto o nome daquele lugar. O meu coração deixou de bater. Busco um local seco para descansar.

És tu? Como ninguém responde, sei que és tu. E de resto, ouve-se o som baixinho e típico de pés a correr. O meu rosto é uma mascara de fúria e dor, com os olhos a arderem devido ao que é libertado pelo deserto.





André Consciência