sexta-feira, 29 de junho de 2012

Rotura de Águas





Havia um terraço, amplo, e a sua vista larga, e a minha vista larga e ampla.
Havia um terraço. O Sol batia. O Terraço, a grande liberdade. Era o teu corpo
No nosso corpo. E o Sol, resplandecente, batia, e apertava-nos e embalava-nos
Num sufoco amarelo, e dourado, e num sufoco envenenado. Eu ficava todo penas
Se te tocava, todo asa, tu toda voo. Imaginávamos por isso saltar os limites
Do Terraço, e fazer do mundo o nosso terraço.

E depois do primeiro pôr do Sol, não voltei a ver-te
O nascer do Sol era uma consequência sem causa
As asas feriam-me o corpo, não paravam de crescer
Em tantos lugares, as asas, arrastavam-me pelo chão,
Nos lugares do vento, contra mulheres despidas e homens
Desarmados.

André Consciência

quarta-feira, 20 de junho de 2012

Goths




I

O ocaso já se espalhava pela floresta
Os cães ganiam quando o Sol se escondia
Quando o Sol se escondia, podiamos encontrar sozinhos
Os nossos festins



II

Porque vou morrer, eu visto-me de preto
Como uma espada na escuridão, ou um fogo que arde
Contra o frio, ou uma luz que precede
A alvorada, ou a trombeta sobre os rostos
Dos que dormem;

E quando o vento dedilhar a muralha
Ou as chamas estremecerem com frio
O fogo nas minhas vestes será apenas
Como um súbito silêncio.


III

Soprei-lhe o cabelo suave e perfumado
Para ouvir as aves a cantar, e sentir-me
Como o rio a correr debaixo do barco.



IV

Os homens olhavam-me com olhos mortiços
Um carvalho morto cheio de mulheres vivas
A cheirar a chuva.


Horned Wolf

sábado, 16 de junho de 2012

Noite, Lisboa




Vislumbro o meu rosto, no vidro baço, o meu corpo, exulto em sombra. Os demónios nocturnos da cidade uivam e guincham e não abafam risos de hiena, por vezes, derrubam também um contentor. Eu lembro-me de que nunca fico assim, mas quando uivo, e uivo melhor que os lobos, não é para as ratazanas. Contraponho a minha embriaguez de fogo com esta corrente de urina. De vez em quando, a passos silenciosos e quietos, dou a volta ao quarteirão, outras permaneço exactamente imóvel nos  bancos cinzentos do palco de cinza ao lado da montra do "Amo-te Chiado", que é desenhada com um coração vermelho de vidro. Movo só a cigarrilha ou a chama que há na cigarrilha, quando puxo. Se passam reparam já muito perto, em mim, e os demónios enchem-se de um horror calado e voltam a tornar-se ruidosos só no topo das escadas. São quatro e meia da manhã. Não estive sempre aqui, mas muitos becos cheiravam a mijo. Penso que poderia estar a escrever, se tivesse papel. Ás cinco,enviei uma mensagem, ouvia-se o ruído electrónico das teclas ecoar em toda Lisboa. Hoje, Os Bardo Cego, projecto de música/teatro improvisado, que mentorizei e onde actuava, foram censurados, tendo assustado, e recordei-me só no barco às seis da manhã, do caso de Artaud. 


"O Caos é uma Ordem por decifrar", diz a parede no Campo de Cebolas, uma frase que cintila na restante treva da pseudo-filosofia dos dois edifícios colados e decadentes. Os Santos Populares foram há não muito, existe uma esplanada montada perto dos táxis que permanece activa, os bêbados e as bêbadas trocavam piropos, as bêbadas, com roupas populares, olhavam-me por baixo das luzes populares, e os homens, pensavam em pedir-me um cigarro que, apesar disso, não pediam. Ao passar pelo arco no terreiro do paço, houve um grande curto circuito a um metro e meio de mim, os sinais de trânsito foram interrompidos. A seguir havia muita polícia, e o Continente montava, na penumbra das não-testemunhas da noite, um estaminé de palha e madeira, que, como sempre, me impede de caminhar a direito, ocupando espaço e silêncio. Agora estou sentado com a única cerveja que bebi, no Campo das Cebolas, e, depois do ruidoso acelera que a rasou, observo a mulher polícia que foi colocada sozinha no cruzamento.  Esta, observa-me reciprocamente, numa conversa indiferente. Levanto-me a passos demorados, há-de haver um barco.

Neste momento e neste país sou relativamente reconhecido, os grandes pedem-me favores, mas eu, que mal tenho de comer, e não tenho como pagar aos meus artistas - que me nutrem ainda assim uma esquisita admiração - sou um porteiro, à margem da "civilização". Hoje perdi grande parte do que me resta: quando vislumbrei o meu rosto, no vidro baço, e o meu corpo exulto em sombra, senti-me, como é hábito, forte e duro como as rochas, e desejei ter poder para acabar com o meu corpo de montanha e a minha alma de céu, mas sou pequeno como o pardal nas estações das quais é Deus e ignorante.

Um amarelo torrado rompe o céu a meio-Tejo, uma miríade de anestesias e estimulantes diferentes racha-me a consciência, e tudo está parado.


André Consciência