segunda-feira, 28 de setembro de 2009

5 da Manhã Visto da Janela


Brother Wolf, Sister Moon - "The Cult" ao vivo em 2009



Um senhor faz passear o cão branco debaixo do azul negro que o desnorteia. Do outro lado de uma porta há vozes que discutem coisa nenhuma, iradas com a ausência da vida e com a presença dela. Um individuo escapa do burburinho, trôpego de febre, perdendo-se nos ângulos entre a escuridão no céu e a noite absoluta da calçada. O cão continua a fitar uma direcção de paredes mudas e ruelas vazias. A noite é uma amante sem sexo... esse é o seu sexo, e derrama-se nas vozes iradas, no silêncio da calçada, no esgar canino e no vazio das ruelas. Cá dentro, a estalajadeira, emparedada na estalagem, escutou-nos o riso.


O meu corpo desenvolve-se no teu,
E as janelas para o jardim,
Para todos os jardins do mundo
No vulto nu da tua saudade
Fazem tombar as estrelas
Arder florestas que nunca cresceram
A altura das nuvens, desaparece,
E a face do céu é branca
Em todos os sinos de todas as vilas
Baloiçam as tuas ancas.

sábado, 19 de setembro de 2009

David e Golias no Vale das Sombras


David e Golias no Vale de Elah - Gustave Doré

Um era um amante triste, outro um gigante.
O amante esperava pelo que já não vinha, olhava pela janela e suspirava. O gigante não conhecia janelas, corria o mundo sem cansaço, e rugia.
Encontraram-se no circo, onde actuaram juntos e se tornaram inseparáveis, o gigante fazia o número de morto e o amante de assassíno.

terça-feira, 15 de setembro de 2009

A Queimadura do Gelo

Dedicado à Alexandra

PETE WHITE, Odin's Sacrifice, 2000

Sento-me, trémulo na espera, e procuro respirar com dignidade. Escuto o zumbido molhado nas paredes de pedra, a claridade móvel e cristalina, como se fosse um túnel ali onde fica. Tento distrair o zumbido. Penetro dentro do meu próprio ser e arranco de mim mesmo o grito de Odin. As suas histórias, uma brancura a lavrar as minhas recordações, tornam-se nas aventuras da minha alma calejada, esculpida e forjada como gelo no fogo ao longo dos anos. O tempo é para sempre, o som ensurdecedor da fome e da pele a esticar tornaram-se no silêncio da árvore. Toda a minha vida estive aqui, nesta pedra nua, acolhido pelas estrelas longínquas para as quais não adivinho (nunca o consegui, mesmo quando elas me queimaram o olho direito) um significado. Por golpe da sua luz escancaram-se as portas de todos os mundos, e apertam venda após venda. Por isso sento-me, já sentado, e não sei já se tremo, o meu corpo é uma memória e as sensações um pensamento de estrelas.
Como podem os meus temer-me tanto, ou respeitar-me? Eu, que nada sou ou tive direito a ser, além de uma resposta aos teus desafios, Pai? Estudei as runas, aprofundei-as até à força de envelhecer os meus ossos pesados, levei uma vida de batalhas, mesmo se nunca quis matar e me envergonha derramar sangue mais fraco, e não me atingiu sequer um vislumbre, que fosse digno de ti.

Aproximavam-se dois lobos, não hesitantes mas proficientes, em círculos por volta do gigante de gelo e do fogo do seu coração. Geri e Freki, pensou o sábio guerreiro, e quando o derrubaram por terra não resistiu, procurou, apenas, respirar com dignidade.

terça-feira, 8 de setembro de 2009

Portugal Progressista?



Antigamente, as questões do amor estavam mais ligadas à etiqueta do que no presente, por exemplo, filho de barão casa com filha de barão, e os casamentos eram quer política quer estratégia de negócio. Instalaram já há algum tempo uma nova Vesta em Nova York (por mérito de França e da sua revolução), e a chama que uma vez preservava toda a Roma é agora a Chama da Liberdade - a Liberdade é, cada vez mais, a Luz guia e o calor que alimenta a nossa civilização. Hoje, o ideal do amor começa também a ser a liberdade (tendo, no geral, ramificado para a leviandade).

Na Idade Média adoptamos o patriarcalismo hebreu e o prazer e a matéria eram vistos como "maus", ainda, Agostinho determinou que o sexo era a fonte de todos os pecados, e devia ser um sacrifício apenas justificável quando para procriação. Entre os atenienses, o sexo teria de ser produto da submissão e da dominação - as mulheres eram totalmente desvalorizadas. A seguir, com a ascensão da burguesia, a nudez deixa de ser vista com naturalidade, e o sexo não deve ser falado, a informação dos livros é controlada. A partir de 1870 começou a aparecer uma espécie de ciência sexual. Continua a questão dos nascimentos legítimos e dos não legítimos (a ideia é o controlo populacional).

Com a mulher a ir trabalhar então o sexo (em vez do dever) passa a ser visto como a base do casamento. Mas ainda ha a necessidade de uma contra-cultura: por exemplo, o movimento de luta pelos direitos civis e os hippies que aceitam o sexo fora do casamento, o aborto, a nudez, e.t.c. A liberdade sexual era símbolo da liberdade social. Resulta a celebração do prazer e a independência sexual. Os casais passam a poder constituir família sem filhos. Os homossexuais passam a poder ter espaços próprios, diminui o tabu sobre a sexualidade das crianças. Agora, com todas as liberdades, o sexo passa a ser o produto principal do consumismo, toda e qualquer propaganda passa a ter uma referência ao sexo, a luta pela liberdade sexual da mulher é estigmatizada: para comprar um pacote de cereais nada melhor que a imagem de uma mulher semi-nua em poses sugestivas. A liberdade ficou assim manipulada, a cenoura pendurada à frente do focinho do burro conduz o burro e descansam-se um pouco as rédeas. Agora, tudo parece mais confortável. pu** da cenoura! Está quase! Tiro na cabeça.

A sociedade que vivemos hoje conseguiu avanços quantitativos, os tabus afrouxaram, mas, esquecendo-se dos avanços qualitativos (afecto, humanização), o nosso sexo é mecânico.

Mudamos agora a palavra “amor”, para a palavra “patriotismo”, a palavra “sexo” ou “sexualidade” para a palavra “progresso”, e revemos o texto. Depois continuamos. Ao individuo move-o o amor, mas ao ser social move-o o ódio, o medo e a inveja. Assim, face ao progresso, a opinião pública tende a opor-se, no sentido de salvar a identidade, criança que procura não evoluir com medo da morte (um exemplo que evoco à memória é o facto do PS/PSD permanecerem no poder, apesar do interminável e enjoativo queixume). Portugal é um país que já morreu. Morreu, a titulo alegórico, com D. Sebastião e espreita-nos, como um grande fantasma, da névoa. Agarramos-nos à carcaça e arrastamos-la pela Região, que se tornou ninho de vermes, cães famintos, e criminosos. O mais comum dos cidadãos é educado a pensar como um escravo ou como um ladrão, porque, sem identidade, sem alma, todo o sistema, ou os seres sociais que compõem o sistema, vagueia fora da lei ou dentro da tirania. O saudosismo cria uma fronte de batalha pelos valores da terra, da história, do património cultural, edifica deuses como D. Afonso Henriques ou ainda Viriato, numa tentativa de recordar os cães de que um dia tiveram um dono e também uma matilha. “Houveram deuses, não venha então o medo. Preciso de uma razão para ser eu mesmo. Criaram aquilo que sou, por isso sei que sou eu mesmo.” Constituem-se esforços pelo tribalismo de um lado, do outro um Portugal desesperado (que morreu ainda infante) chega a sugerir o seu “velho” e virtual império, desta vez debaixo da bandeira cultural, destacando-se sobre os países pobres do nosso falecido colonialismo, enquanto por outro lado o progresso, todavia, dirige-se à universalidade, a moralidade do cientista aponta que a ciência é para o mundo, e não para uma nação em específico (excluímos a divisão ocidente/oriente). O progresso indica as liberdades, os privilégios, os prestigios, os direitos humanos (o desejo está a tornar-se sinónimo de direito) e, numa palavra, o individuo. Não obstante, o burro e a cenoura voltam a penetrar o cenário. Igualdade = direito de consumir. Fraternidade = supermecado. Luz = dinheiro. Somos produtos à venda dos nossos produtos. Como se ensina a liberdade a pessoas que conhecem apenas a promiscuidade e a arte de escravizar, mentir, e manipular? O progresso moderno tem um só ideal, a Verdade, inseparável da liberdade, porque toda a mentira é construção do medo e o medo pai de toda a opressão. Todavia nós nada sabemos desses conceitos, ficámos perdidos na névoa, com D. Sebastião, o Rei que faria do Mundo o Império de Cristo. As nossas maiores mentes sentiram esse medo da verdade e da morte tanto quanto o vulgo saca-carteiras, por isso criaram obras como “A Mensagem”, para se esconderem e ao seu povo dentro da redoma da superstição. “Alento Portugal! Alento! Afinal, somos um povo de suspiros.” É importante é dormir, porque a dormir sonhamos.

segunda-feira, 7 de setembro de 2009

Circus Infernalium (excerto)




II

A rapariga solta violentamente a mão da mão do rapaz. "Retira, nesse caso, a máscara!"

Recebe um espelho e, colocando-se em frente ao rapaz, segurando-o a nível do coração, começa a falar sem som.

Faz-se um silêncio tremendo.
Depois começa a surgir som nas palavras:
"(...) a violência dos seus braços é a mudez do teu nome. Vê-me! Vento e Sol que se põe e a voz do nigredo no vento que tu ouves, «não salvarás», «não salvarás», és um de nós! Massa orgânica desesperada que quer sangue e esperma e dor cantada! [pausa surpreendida e deixa cair o espelho que se quebra] Pedem ajuda! E tu sentes tanto... Tanto. Tanto! As palavras deles começam a sair por ti mas tu nem sequer as apanhas e é por isso que tens tantas mascaras não é?"

O rapaz, que uiva e ri ao mesmo tempo, repete:
"É oan saracsam snet euq ossi rop é e sahnapa sa reuqes men ut sam it rop rias a maçemoc seled sarvalap?"
Abana a cabeça e diz: "Os desassossegados expressam-se por mim, em arte, e libertam-se..."
Ela responde: "Tu não podes liberta-los!"
"Não?" pergunta e ri-se.
Ela: "Não! São olhos velados que não podes libertar. São olhos velados que vêem tudo, e tu não vês tudo ainda, por isso não apodreces com a mesma rapidez mas as coisas apodrecem através de ti."

Ela apanha dois pedaços de vidro partido e coloca-os sobre os olhos:
"Não existe escapatória fora da ilusão de que o Sol renasce. O Sol só existiu uma vez e a sua viagem pela escuridão depois, foi para sempre. É esse o olho que te observa e o mudo e hórrido grito é o sonho pútrido de todos os mitos humanos."

Ele ri-se bem disposto e ela larga os vidros e ri-se e dão as mãos, animados, enquanto cantam uma canção de embalar sem palavras.