sexta-feira, 24 de julho de 2009

Pensamentos

Gárgula (neogótica) da Catedral de Notre-Dame em Paris


Da Morte

É natural que um homem nutra esperança de que, após a sua morte, seja lembrado com um suspiro lânguido no coração das donzelas e daqueles homens convictos do seu tempo, dos seus companheiros de armas.

Tenho náusea, náusea de todas estas mortes. E quando sonho a minha morte, sonho morrer não de amor, nem por causa alguma que aglutinasse as mentes agudas dos homens, penso só, e só, morrer só, de solidão, morrer de solidão. Acabar assim, na escuridão, seco e frio, claro e cristalino. Porque só a solidão não se corrompeu.

Só do espelho, pode o corpo nu se vestir. E só da luz da chama se tinge a agua.


Da Solidão

Se fosse, ao menos, dois, saberia onde me encontrar.
Vivemos como Ciclopes.



Do Que a Eternidade Anima

A chama é o pânico num teatro sem vida.
A morte é a calma num teatro de gelo.



Da Verdade

Por vezes a verdade é tão feroz quanto a nossa leoa e tão pura e plácida quanto o nosso cisne. Por vezes pode até despir-nos de olhos como o nosso falcão justo.


Da Companhia

Até o mais profundo afecto do homem social, a família, se baseia na projecção mais superficial do homem em geral, o dinheiro.



Da Poesia

A poesia em palavras é só mais uma mascara social, um véu intelectual sustentado por uma cortina ilusória entre um homem e uma estrela, um homem e a beleza das coisas a sério. Tanto palavreado só servirá para se esconder delas.

segunda-feira, 20 de julho de 2009

Diálogo Atrás da Membrana

Francesco Clemente



O menino
"Sibila ó monte de Luz"

A menina
"Habita a Morte! Vive!"

O menino
"A Luz do Mundo a seus pés; a sua Coroa: a Luz do Mundo; o seu Coração: um Globo de Trevas ferido em vermelho."

A menina
"O teu sangue na luz sem eco."

O menino
"Eu sou o animal da boca quebrada, e do orifício de mim um Universo."

A menina
"Eu sou este, que criou, sem egoísmo, o que é seu."

O menino
"Eu sou este, que escapou da morte e do sufoco."

A menina
"Silêncio é o meu feitiço."

terça-feira, 14 de julho de 2009

Fornalha

Chisai Benjo, Takahashi Kaito



Nos recantos da Lua arde a floresta. As criaturas vis, os rastejantes, os que caminham o lodo, os que se escondem nas grutas, e as bestas que não conhecem nome, são eternas, e reconhecem-No quando os arbustos se incendeiam e morrem, imortais, com o fogo da vida. As sombras tremem e escapam sem demora, porque as testemunhas são os seus lampiões. Da resina dos arbustos solta-se o perfume do Celeste, o Inexistente é invadido de uma recordação perene, veste ossos de sonho e emerge da terra negra e verde.




Perfume a Mar Vazio, Horned Wolf

sexta-feira, 10 de julho de 2009

Santistuto

Adagio de Kris kuksi, 2002



Hoje consegui expandir os meus horizontes, descobri, junto à larga e envernizada porta da entrada do Santuário, um homem de casaco cinzento e cinzentas as roupas, que toca accordion incansavelmente. Falta-lhe uma orelha, na qual usa gesso, e tem um violino, com a sua caixa, aos pés amarrotados, para onde ninguém deita moedas nem notas. As notas e as moedas não são parte do Santuário, mas as pessoas continuam a mover-se à imagem da sua existência. À medida que toca parecem existir rachas nas paredes que mudam de direcção e dançam formas, mas eu creio que estas rachas são uma ilusão óptica do próprio som. Perto da caixa do violino, estão pedaços de jornal rasgados, talvez para lembrar o dinheiro em papel, e está um cacho de bananas. Por vezes, a ladeira do outro lado da porta, abre-se, e a face de um pequeno macaco com sinos, espreita de olhar tanto curioso como amplo e vazio. Encontrei também, na retaguarda da quinta, a lixeira, onde habitam inclusive as prostitutas, embora seja difícil distingui-las excepto pelas formas das latas. Ai, podem encontrar-se, nas laterais, urnas e pequenos caixões – provavelmente de crianças. No portão de entrada, todo ele de latão, uma caneca grande de cerveja, sempre cheia.

Podem encontrar-se palmeiras, depois do rico e imponente portão de saída do Santuário, formam um corredor e de um lado do corredor, campos de milho, do outro, a casa dos escravos. Por vezes, os aristocratas de chapéus-de-chuva e bigodes espiralados, vão confessar-se aos escravos. No caso do escravo retorquir, é mandado açoitar por outro escravo e eles observam atentamente o menear dos rabos como se de eclipses se tratassem. Em muitas ocasiões, se a sessão for longa, podem ser vistos frutos a amadurecer e a escorregarem dos rabos para o solo.

Depois de eu mesmo me quedar para ver este evento, e ao retornar para o meu quarto, a senhora de branco, que gemia num dos cantos dos ângulos, deu-me a mão despida, o pulso fino. A minha pele roçou a dela. Logo a mordi violentamente e sangrei longamente.

Nas paredes do meu quarto, uma das árvores está a despir-se ao espelho e a escrever uma carta para alguém muito longe.



A Sea of People, Horned Wolf, 2009

quinta-feira, 9 de julho de 2009

Discurso de Bab'El


Horned Wolf, Discurso de Bab'EL



"A Confusão das Línguas" por Gustave Doré (1865)

domingo, 5 de julho de 2009

Vila Final

Orangotango de Sumatra - Autor Desconhecido




Ela têm um pesadelo que é meu.

Passo as horas ali, no final da vila, numa fabrica abandonada, encostado à árvore que está no final do mundo e que estala de Noite com tecidos oraculares. Ás vezes passam pessoas, com cães, no escuro, e com cães escuros. Estou na bruma, sinto-me invisível porque sou um fantasma. Tenho cada vez mais a certeza. Mesmo quando me olham como se eu fosse um louco, percebo que ninguém nunca mais me porá a vista em cima. A não ser ao jeito de assombração. Os tijolos singelos e abandonados, encosto-me todo a eles. Assobiam, ocos, ao vento. Sou todo eles. A lua é uma ferida de luz no meu sono, e assim são os meus sonhos.

A solidão somos nós, e somos nós todos vistos do meu corpo.

As vossas presenças são como pedras, mudas, frias, arremessadas contra o meu corpo imortal, como árvores que morrem e que nunca serão derrubadas. Como mundos de florestas que morrem e que nunca serão derrubadas. Onde só os deuses dançam, horrorizados de tão fantasmagóricos.

A luz verde e que é uma doença e que é como se fosse o amarelo da febre talvez.

Estou tão cansado. Pálido. Existem rugas em mim esta noite. Visíveis. Só as rugas são visíveis, eu sou leve e transparente.

Porque não vieste? Não queria ter vivido para sempre.

Perto das linhas finais, alguém me pergunta alguma coisa sobre anjos. Só respondo quando me perguntam as coisas dos anjos.

Teço uma resposta e acabo, antes de me meter no comboio e ser consumido pelas lâmpadas confusas.