domingo, 28 de junho de 2009

A Metade Devorada V






Era um dia especial porque eu podia brilhar sem ninguém ver: ser mais genuíno. A nossa estética arquitectura portuguesa sempre foi amante de um futurismo transcendente. E até àquele dia eu nunca tinha reparado em ti, que não vias as mesmas luzes que eu, no céu. Escolhíamos roupa e eu não reparava em ti, lá fora reparava em ti, tu não vias as pequenas faíscas que escapavam do Sol e desciam como mil peixes incandescentes para inundar a terra. Tu não o vias, eu testemunhava-o sozinho. Era já um rapaz feito, mas só então percebi.


Eu amo, e depois, morro, e quando amo morro, e quando morro amo.


Todas aquelas coisas que não eram nada, insolentes insubordinações que se afastavam do círculo e criavam outros círculos: como se pretendessem o absurdo de se existir por fora, tal se eu não contivesse tudo. E engolindo um milhão de estrelas pousei nos seus crepúsculos. Nunca existiu isto, fora do corpo mineral: Um exercito de sapos que coaxavam e pulavam de lugar em lugar. Arrastava-os para mim, as suas fantasias mais secretas, os seus combates, as paixões, e todas essas extraviações de uma anomalia extra-terrestre intitulada de pensamentos, de pluralidades charlatãs.


Todos os dias eu nascia no Sol, para me lembrar.


Eu amava-te. Tanto quanto te amo. É quase pena o que não pudémos contar. E é quase pena os anos de silêncio, por uma recordação serena, uma recordação quase só do coração.
Era de noite quando as estrelas caíram. Era de noite quando Deus se lembrou de queimar os homens. Eu fiquei contigo no pontão, quase debaixo da Ponte Vasco da Gama, e tinha escrito na madeira, para ti; apenas o rio e os olhares e os gestos com brisas de cabelo, diziam mais: ainda era de dia para nós, e não sabíamos que o nosso amor não era a única forma de se morrer e de se escapar da morte.


Devido ao Olho.
Fui cinzas, marés inteiras de cinzas.
Fui cinzas e fui Olho.
A tua mão, tão perto da minha…
Tocávamos-nos enquanto fazíamos muita força com os corações, mas ainda existíamos, mas o mundo ainda se encontrava colado a nós. As pessoas tinham o peso de sombras. Nós éramos o centro gravitacional. E não sabíamos, não sabíamos que éramos engolidos para sempre, gradualmente e copiosamente, engolidos para sempre.





Eu só sabia que éramos dois quando iniciávamos o rito de amor. Deve ter sido ali, que alguma forma alienígena a tudo o que éramos entrou em nós para crescer às escuras, se vingar de sermos como éramos.

quarta-feira, 17 de junho de 2009

O Macaco Amestrado





A cultura, as tradições, são feitas passar essencialmente pelo bem-poético, como eu lhe chamo, e assim tem sido ao longo dos tempos por mais mãos à palmatória que tenham existido. O “capital” desse bem é a inspiração.

“Educação de Direita”, e falta dizer educação em que sentido. Como a maior parte de propaganda de direita, o texto mostra conceitos que fascinam os perdidos num mundo perdido, não os pondo todavia em prática ou nem sequer os conhecendo.

Uma falácia encontra-se neste artigo, que se baseia em dois temas:
A Liberdade, A Educação (educar + acção, teoria e a prática dessa teoria). É claro que parte da liberdade está em saber tomar decisões conscientemente, para tal, necessita-se de informação e de inteligência. Para adquirir informação é necessária uma mente aberta, vulneravel, para adquirir inteligência um raciocinio forte, uma boa resolução das equações relacionadas com os limites e uma limpidez incorruptivel posta em prática. Nenhuma destas coisas vai de encontro ao que o artigo menciona, nem da forma como o menciona. O mesmo será dizer que o macaco amestrado é o macaco livre. A educação do homem integro e inteiro provem da liberdade, a liberdade do homem escravo provem da educação imposta.

A cultura provém das liberdades, e toda a educação sã se baseia nesse ideal, porque a vida e a liberdade se baseiam na mesma alma, uma cultura proveniente das opressões (e por opressão não a igualizo a esse bem que é a disciplina) é uma cultura indesejada.



Resposta a Boulevard das Ideias

terça-feira, 16 de junho de 2009

Felicidade


O espectáculo acabou, as cortinas fecharam-se e agora ninguém nos escuta quando rimos sozinhos. Nunca contei a ninguém se ela se tranca, se ela fica trancada na casa de banho a dar-se prazer, se me fecha no exterior. A multidão na rua caminha devagar embora esteja a chover torrencialmente. Eu estou parado e as pingas não me tocam. A multidão na rua é toda de amantes, agarram-se na chuva a tentar prender tudo aquilo que nunca será deles. Ouvi dizer que está frio. Deve ser devido a estas e a outras coisas. Não há nada para ver aqui, as cortinas cerradas. Tudo o que está fresco já passou de prazo. Os seus gemidos na casa de banho dizem que sou um mau rapaz. Os amantes apertam a dor, não vá tudo o resto escapar. E ninguém percebeu a felicidade. Lembram-se dela ao jeito de anedota, se ninguém os vê, e riem-se em sussurro.

sábado, 13 de junho de 2009

The Death of Knowledge



Modelo: Lady Alexiel
Foto Original: Nanashi

quinta-feira, 11 de junho de 2009

Placas do Jardim


Giordano Bruno por Ettore Ferrari





I

O Sol aquece a Terra. Assim existe vento, chuva, e chama.

O Amor aquece o Amante. Assim existem suspiros, pranto, e chama.

Destapar o coração ardente, é vencer os deuses e o homem. Não existe outra arma, e nenhuma outra muralha além dos raios do Astro.

Esplendor é a agua que se precipita contra a Flama, e causa o Cristal, a Pedra.



II


De Luzes Gémeas, dedica a vista a tudo o que é Superior.

Oferece-lhe tudo o que seja igual ou inferior a ti.



III

O labor da Inteligência dá-se na quietitude e no repouso, não no trabalho movimentado.

Assim o labor do Amor é pacifico, apesar de de si, se gerar o movimento.



IV

O lado negro da Lua é sempre o lado de quem a olha. O lado luminoso da Lua é sempre o lado de quem a contempla.



V

O Amante perfeito reflecte-se no carvalho que não treme. Não no carvalho que dobra sem partir.

O desejo sem a dor é o mais alto afecto do homem.



VI

"Chegando ao ultimo e ao dia mais feliz da nossa vida, planeamos para esse dia paz, saude e tranquilidade de espírito; porque não obstante quanto, por um lado, a maior dor nos atormentou com obstáculos, esse tormento, por outro lado, tornou-se completamente absorvido pelo prazer que tomamos nas nossas criações e na consideração dos nossos fins."

Epicuro, traduzido por mim



VII

Os escolares de Sócrates podiam subornar os guardas prisionais, porém Sócrates não queria temer a Morte, porque nenhum filósofo teme a Morte: O ultimo favor de Asclepius.



VIII

O coração, tornado na maçã dourada, deve ser oferecido a nada que ultrapasse outro objecto em especifico, mas àquilo que é, em todas as coisas, infinito.

Da mesma forma, aquele que se esconde nas caves deve ser resgatado para o peito, para que suspire de amor e cause o caos e a tempestade em todos os quatro cantos do mundo. Depois, a luz, fará que seja tranquilo, a escuridão dar-lhe-á nobreza.

O peito é a habitação da beleza e da bondade. E assim são os seios da amante e da mãe, que origina a natureza em estado puro do intelecto e da razão.

As tempestades nos quatro cantos do mundo serão murmúrios de amor, e a inocência o punhal que rasga a mortalha do coração ardente.



IX

Nenhum Raio do Astro é real, excepto se desperta o desejo juntamente com a ideia.

segunda-feira, 1 de junho de 2009

A Metade Devorada IV





Nós riamos-nos da minúscula criatura canina, porque uma força estranha à sua natureza e à sua constituição o voltava contra a cauda magoando-lhe a coluna, e o lançava num reboliço de tentar caminhar e se confundir por só dar voltas sobre si mesmo. Depois a alva nervura do olho, manchada de um vermelho lustro, e não haviam nele órbitas vazias, havia carne papuda e sangue jorrado, o vulto em tremura, como se risse. Nós riamos-nos. E ele era uma mancha pisada, contra o solo movediço de intransponível: à espera, em todos os passos: a voz da morte. Por isso riamos-nos e tomávamos brindes amaldiçoados, construíamos enredos de vida em seu nome, para diverti-la. O meu corpo encarquilhado, ilusório, observador do ilusionista. A morte dizia: conhecimento. Depois eu era o cão, em todos os tempos para os quais procurasse escapar, procurava correr, confuso, por voltas sobre mim mesmo sempre que apontava para algum sítio. Haviam duendes de faces desfiguradas, e riam-se muito. A ultima palavra.


Todas.

Um vagabundo. Um homem cuja metade devorada criava asas de traças em humidades nauseantes. Mil asas pequeninas de um eclipse psicadélico e de um estrondoso mar em comoção. Abismos do espaço e do tempo. O vagabundo não se interessava, a sua face suja era límpida demais para incógnitas, e por isso era inconcebível. A metade devorada ostentava tentáculos microscópicos de carne cortada, e abraçava todas as coisas com um sufoco e uma avidez sobrenatural.


Antinomianismo: contrariar a corrente de decadência para a qual a criação, deixada a si mesma, tende a escorrer. Que estes sejam ferreiros, quer dizer que são capazes de moldar o mundo através do fogo.

Com luz de ave azul, de ave que caminha nos meandros dos espaços inatingíveis entre as estrelas, emanando sonhos e redemoinhos de renovações invisíveis, ela perscrutava os meus olhos, como se os seus tocassem e explodissem violeta, e quando me apanhava a alma, ia dizendo: “as árvores em que se abriga são o isolamento, mas as palavras que ele não encontra, e que procura, são ele”.
Eu quedava-me em litania: a poesia é feita à imagem do leitor. Deus lê-nos, nós escrevemos. E estamos muito sós, a flutuar e a atravessar muitos olhos, túneis que desembocam em túneis que em túneis vão desembocar. Eu olhava os olhos extraídos das órbitas pela pressão, as janelas abandonadas desde o inicio, daquele frágil cão inutilizado pelo fim. E risos, a sair de bocas ocas em bocas ocas. Torrentes. A tua mão calorífica? Meu anjo? Gratidão.
Depois, aquela parte que não estava devorada arrastava-se pelas linhas de ferro, e vagabundeava sem realeza vagabunda: apanhava os restos que se dividiam em restos que se dividiam em restos: a parte comida era a parte deixada por comer: ser-se devorado.


Reflexos, a sala escura, e o espectáculo de ilusionismo, eram agora um iluminado labirinto de espelhos cristalinos e incorpóreos. Havia glória no canto dos coros, estendida na distância até tudo se tornar distância: os fantasmas desistiam e voltavam aos seus abrigos de esquecimento.

O meu corpo encarquilhado, a crescer contra si mesmo enquanto mirrava, inquebrável porque estático, impossível de derrubar, a observar. O ilusionista era o seu predilecto truque.